sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Lições da literatura de auto-ajuda

Uma das coisas que gostaria de entender - e são tantas! - é o porquê da literatura de auto-ajuda ser tão apreciada por milhões de pessoas.
Claro. Há explicações simples, tais como:
A grande maioria das pessoas é simplória.
É verdade. Mas uma explicação dessas serve para a literatura de auto-ajuda, para grande parte dos programas de TV, para os gigantescos shows de música pop etc etc.

Eu procuro uma explicação mais específica. Quero entender por que multidões se enternecem com a literatura de auto-ajuda, mesmo quando essa vem por atacado, em livros de várias centenas de páginas.

Uma das maiores - talvez a maior - das minhas dificuldades para decifrar esse enigma seja meu fraquíssimo conhecimento dessa literatura. Conheço muito pouco da literatura de auto-ajuda. Pior: não gostaria de conhecer mais. Mas, feliz ou infelizmente, o Facebook e os powerpoints que me mandam por e-mail me fazem travar contacto com ela.

Então, vamos lá.
Partamos de um exemplo:


O texto começa com a constatação de que pássaros comem formigas, mas depois de mortos são comidos por elas. Nem sei se isso é verdade, mas deve ser. Nunca fiquei a observar um pássaro até o sublime instante de ele saborear algumas formigas. Quanto ao tal fenómeno inverso, é verdade que já vi formigas a devorar baratas. Com um bocadinho de esforço posso imaginá-las a comer um pássaro.
O que interessa aqui é que parece que os textos de auto-ajuda começam sempre por alguma constatação factual dificilmente questionável. É uma forma de ganhar, logo de início, a concordância do leitor.
Se eu começo por dizer algo como: a chuva molha, quem me lê já estará a concordar comigo desde o começo. Um bom começo.
Como consegui a simpatia inicial de meu leitor, vou agora pegá-lo desprevenido:
Tempo e circunstâncias podem mudar a qualquer minuto.
Beleza. Joguei uma segunda frase em cima de um leitor já despido de resistências.
Mas, como estamos atrás de um entendimento da mecânica da auto-ajuda, vamos parar um bocadinho nessa frase.
Quer ela dizer que duas coisas podem mudar a qualquer minuto. Quais são elas? Ora, o tempo e as circunstâncias.
Alto lá! Quer dizer que o tempo pode mudar a qualquer minuto? Eu diria que não só pode como não tem outra alternativa. Afinal, minuto é uma das medidas do decorrer do tempo. O tempo não só pode como, digamos assim, é obrigado a mudar a cada minuto. A menos que se trate, aqui, do tempo climático. O texto que vem lá pra frente indica que não.
Quanto às circunstâncias, seje lá o que seje isso, podem mudar ou não. Depende das circunstâncias.

Mas voltemos ao nosso leitor ávido de ensinamentos simplórios: como já foi agarrado pela primeira frase, bastante factual, ele engole a segunda sem parar pra pensar.

A partir daí o autor do texto, seguro de ter o leitor a seu favor, toma coragem e parte para a conclusão:
Por isso, não desvalorize ou machuque ninguém e nenhuma coisa à sua volta.
Por isso é - aqui - o elo de ligação lógico entre as premissas e a conclusão.
Quer dizer que já que formigas e pássaros se devoram mutuamente eu não devo machucar ninguém? A conclusão lógica não deveria ser exactamente o contrário?
Se formigas e passarinhos, seres tão valorizados em relação a, por exemplo, cigarras e ratos, fazem toda essa maldade uns com os outros, por que diabos eu não devo machucar ninguém?!
Nem desvalorizar?
Quer dizer que porque formigas e pássaros se devoram mutuamente eu nem posso dizer, de alguém:
- Esse sujeito não é lá essas coisas que dizem...

Continuemos.
Você pode ter poder hoje, mas, lembre-se:  o tempo é muito mais poderoso do que qualquer um de nós.

Vou deixar de lado o facto de que o (a) autor(a) do texto distribui vírgulas como quem joga queijo ralado em espaguete. Só quero assinalar que essa mania parece permear todos os textos de auto-ajuda.

Quanto ao conteúdo: agora que você já foi dominado pelo texto, o autor deita e rola. Se ele dissesse algo como o infinito é mais poderoso do que qualquer vassoura, daria no mesmo.

Porra! Qual é o significado de o tempo é muito mais poderoso do que qualquer um de nós ?!?!
Mas o leitor, já inebriado pelas assertivas anteriores, pensa logo: É verdade. Estou a tornar-me velho. E isso é inevitável.
Diga-se, a bem da precisão, que não é inevitável. Pode-se morrer jovem.
Mas o leitor, que ao que tudo indica ainda não partiu desta para melhor, está a ser vencido - mesmo - pelo poderoso tempo. Ou, mais ainda, pelo poderoso texto.

Agora, à guisa de fecho, vem mais um facto:
Saiba que uma árvore faz um milhão de fósforos, mas basta um fósforo para queimar milhões de árvores.

Lindo! É certo que se trata de uma metáfora. Afinal, fósforos - que eu saiba - não nascem em árvores. Mas a essa altura o (a) autor(a) já se pode conceder certas liberdades poéticas. O leitor já está de quatro.

E vamos a mais uma conclusão lógica:
Portanto, seja bom! Faça o bem!

Não sei como os tais fósforos levam inevitavelmente ao preceito de que se deva ser bom e fazer o bem.
Mas se a conclusão é boa, vale tudo.

Seria mais curto dizer:

Seja bom e faça o bem. Isso é bom e faz bem.

2 comentários:

Anónimo disse...

Realmente, se o escritor é ruim, melhor seria se ele fizesse isso e nem publicasse livro algum! kkkk É fato que muitas pessoas que querem escrever um livro - seja para vender ou para experimentar - e não tem aptidão, acabam escolhendo esse tema. Como vc muito bem demonstrou, dá pra enrolar e encher bastante linguiça! Eu, justamente por ter sido educada por vc e pela mamis - que, neste ponto, pensa bem parecido com vc - demorei 30 anos pra chegar perto de um livro desses! Digamos que filtrando bastante dá pra tirar algum proveito dos malditos! Rs! :)Sofia

MCV disse...

As crenças ecuménicas* - e o facto de haver mercado para tais livros um pouco por todo o lado onde se vendem livros indica que se trata disso mesmo - adaptam-se ao "tempo e às circunstâncias".
Ainda por muito tempo haverá crentes.

Abraço
* biblio-ecuménicas?