sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Mixórdia



Bobó de camarão, para mim, tem vários significados.
Uns dez anos depois de ter saído do Presídio Tiradentes, em São Paulo, fui convidado a comer um bobó de camarão em uma casa do Pacaembu, bairro de Sampa que já foi o reduto da alta burguesia e já era, na altura, um bocadinho decadente.
Ao lá chegar, fui informado que o cozinheiro responsável pelo bobó era nada mais nada menos que Frei Beto.
Fui à cozinha cumprimentá-lo. Ambos fomos civilizados. Nenhum de nós dois revelou o desconforto diante da presença do outro.
Pois nunca tivemos um relacionamento que se pudesse classificar de amigável. Quem quiser, procure neste blogue os posts relativos à prisão (São os "Era uma vez").

Sim. O bobó estava ótimo. Nem tudo que Frei Beto produz é ruim.

Cá em Portugal, minha mulher - a Léa - resolveu fazer bobó de camarão para os amigos portugueses.
Foi um sucesso. Ela havia recebido, de uma amiga que nos veio visitar, um bocado de azeite de dendê.
A mandioca compra-se cá.
Pois.
Nosso anjo da guarda, que vem cá em casa duas vezes por semana, resolveu fazer o bobó na casa dela.
E não é que também fez sucesso?!
O facto é que, hoje, trouxe-me um bocadinho ( um montão, na verdade!) do bobó que voltou a fazer na casa dela.
Disse-me que a filha caçula pede sempre que ela refaça o prato.
E o de que mais gostei é que o chama de Mixórdia.

Belo nome para o bobó de camarão.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Desculpas atrasadas

Um bocadinho atrasadas. Só quarenta anos.
No Presídio Tiradentes, em São Paulo, onde a ditadura militar me deixou trancafiado pouco menos de dois anos (1.971 - 1.973), conheci boa parcela da Esquerda Revolucionária brasileira.
De muitos passei a querer distância.
Mas a alguns me afeiçoei. Guardo boas recordações de vários companheiros de presídio.
Um deles foi Luiz Bursztyn, o Bom Bril, alcunha que derivou da aparência dos cabelos dele.
Aliás, a mulher dele, também presa na ala feminina (conhecida como A Torre), tinha o nome de Jurema. Virou, claro, Ervilha, pois Jurema era uma marca conhecida de ervilhas em lata.
Convivi pouco com Bom Bril, pois morávamos em celas diferentes. Mas tínhamos nossas afinidades.

Poucos anos depois, talvez uns seis anos, trabalhava eu na Promon Engenharia e encontrei Bom Bril nos corredores da Empresa. Ele fazia parte de um grupo de visitantes. Paramos, cumprimentamo-nos... e eu não consegui lembrar o nome dele, nem a alcunha, nem nada. Apenas sabia que estivéramos presos junto.

Jamais me perdoei por essa falha de memória.

Como se isso não bastasse, fiquei com um volume - o de número 7 - da Mafalda, que era dele.
Está comigo até hoje. Como informa a capa, ele morava no Pavilhão 2, Xadrez 8.



Se por um desses raros acasos ele chegar a este blogue, quero que me diga para onde enviar o seu volume da Mafalda, com minhas esfarrapadas desculpas pelo lapso de memória.

A situação que vivíamos penso que explica parte dele.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Talismã


De volta a casa, ainda sem saber onde lançar as cinzas da mulher, resumidas ao conteúdo daquela urna que ocupava o assento do passageiro, repassava na memória perguntas que sempre se fizera, sem resposta.
- Por que tantos anos com ela, se nunca a amara?
~Por que sempre fora fiel, se poucas vezes a desejara?
- Por que dividira com ela seus momentos de lazer, se não havia entre eles afinidade de espírito?

E assim, sucediam-se as interrogações.

Talvez por algum raio de sol que o ofuscou temporariamente no percurso, quem sabe em razão da emoção da cerimônia fúnebre, veio, enfim, a resposta:
Era certo que jamais a amara, nem tivera com ela uma vida sexual empolgante, nem dividira com ela suas ironias e seus sarcasmos, pois para ela os humores eram de outra natureza.
Mas, a seu lado, tudo dera certo. A vida, mesmo quando movida por acasos, se é que não sempre, fora muito boa.
Ela fora seu talismã. Era isso.

Chegou em casa, colocou a urna na sala, em lugar seguro, disfarçada entre alguns bibelôs.

Quem sabe as cinzas fossem avatar da companheira perdida.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Odores e Reflexos





                                                     ALGUNS TÊM FÉ DE MAIS,
                                                     OUTROS TÊM FÉ DE MENOS.
                                                     UNS DESTILAM VENENOS,
                                                     OUTROS PROCURAM A PAZ.

                                                    UNS DIANTE DE ESPELHOS
                                                    NÃO VEEM O QUE SÃO.
                                                    PELO SIM, PELO NÃO,
                                                   CHAMAM À IMAGEM: PENTELHOS!

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Elogio dos elogios

O livro Cântico dos Cânticos é conhecido por ser poeticamente sensual (ou seria sensualmente poético?)-
De qualquer modo, logo no início, ele traz um elogio da mulher a seu amado que - para mim - dificilmente pode ser suplantado por qualquer outro.
A tradução que segue é minha, mas não difere quase nada das traduções tradicionais. Apenas há uma expressão que, literalmente, é teu peito (ou teus seios) e que as traduções para o Português vertem para teu amor, teus amores ou tuas carícias.
Como se trata de uma mulher a falar sobre um homem, teus seios não ficaria lá muito adequado.
Preferi traduzir como teu corpo. Penso que fica melhor. Mais nada contra as demais traduções.


domingo, 10 de novembro de 2013

Deus criou o mal

Circula na Internet um diálogo fictício entre um professor e Einstein, ainda menino. Vejam:




Grande número de pessoas adora esse tipo de conversa mole.
Isso resulta do facto de haver muita gente cristã e quase ninguém que leia a Bíblia.
Se lessem, veriam que Deus não concorda com esse vídeo.
Aí vem também a turma que é monoteísta mas acredita em vários deuses.
- Ah! Mas há o Deus do Antigo Testamento e há o Deus do Novo Testamento!

Quanto a mim, fui ensinado que há um só Deus que se expressa pelos 66 livros (para alguns, um bocadinho mais) da Bíblia, livros esses ditados por Ele a seus ghostwriters.

Aliás, o cristianismo, com essa invenção do três-em-um (Pai, Filho e Espírito Santo), bagunçou o monoteísmo um bocadinho.
E também poucos se dão conta de que Moisés, por exemplo, não era monoteísta. Moisés era monolátrico. Ou seja, acreditava que o seu Deus era o ó do borogodó, mas sabia que os demais povos tinham lá seus deuses. Só que inferiores ao dele, claro.
O monoteísmo surge apenas em Isaías. E é onde eu queria chegar com esse papo.
Em Isaías 45:18:
Porque assim diz o Senhor [...]: Eu sou o Senhor e não há outro.

Mas volto ao vídeo acima:
Em Isaías 45:7, está dito:
Eu formo a luz e crio as trevas; eu faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas.
(tradução Almeida corrigida)

Falou e disse. Alguma dúvida?


sábado, 9 de novembro de 2013

A modéstia de Lula



A revista Visão, cá de Portugal,  publicou em seu número 1077, do final de Outubro, uma entrevista de Lula ao jornalista Jesús Ruiz Mantilla, do jornal espanhol El País.
A entrevista, publicada primeiramente aqui, foi traduzida do espanhol para o português de Portugal. Não deixa de ter piada um Lula a falar do modo lusitano.
A revista Visão até que poupou seus leitores do inteiro teor do panegírico inicial do entrevistador. Transcreveu apenas parte dele.
Lula, como sempre (e quanto mais diante de um entrevistador que assume gostosamente o papel de escada), fala da miséria em que recebeu o governo brasileiro e como deixou tudo quase às mil maravilhas. O quase é pra que reste algo de bom para sua sucessora fazer.
Mas, a meu ver, o auge de sua megalomania vem neste trecho:
Qualquer líder que esteja na oposição sabe que mudanças deve aplicar, ao chegar ao cargo. Hollande, por exemplo, sabia-o, durante a campanha...
Tive uma conversa estraordinária com ele. Sou amigo dele já há muito tempo. E dizia-lhe: não te podes esquecer do teu discurso, ao chegares à Presidência. Agarra as tuas propostas, enquadra-as, coloca-as na tua mesa de cabeceira e não te esqueças nunca das razões da tua eleição. 
Com Obama, comentei: deves limitar-te a mostrar a mesma coragem que o povo americano demonstrou ao eleger-te Presidente.

Não sei o que seria de França e de Estados Unidos se Lula não tivesse dado essa mãozinha.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Dúvida


Essa dúvida está colocada em sentido literal.
Mas poderia ser também uma metáfora.
Depende de se considera Porto uma cidade portuguesa, ou um destino seguro.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Milímetros que valem uma vida





Em 1954 o Brasil ficou com o segundo lugar no concurso de Miss Universo. Martha Rocha, aquela, a baiana, perdeu o título por pouco. Será?
Ao menos foi o que ficou registado na marchinha de carnaval:
Por duas polegadas a mais
passaram a baiana pra trás.
Por duas polegadas,
e logo nos quadris.
Tem dó, tem dó seu juiz.
(Alcyr Pires Vermelho, Pedro Caetano e Carlos Renato. Foram necessários três pra compor isso?!)

Mas alto lá: duas polegadas de rabo a mais são bastante coisa, não é? Pegue uma régua que tenha escala em polegadas e verifique. É muito.
Para homens razoavelmente normais é até muito bom. Mas para juízes de concurso de beleza deve ser uma tragédia.


Quanto a mim, dependo de apenas quatro milímetros. Não no rabo. Na aorta. Está com a régua ainda na mão? Então dê uma olhada. É quase nada.

E não estou a falar de concurso de beleza. Trata-se da minha vida. A única que tenho.
Por isso, saí hoje feliz  da consulta ao cardiologista. 

Ano passado, a angiotomografia apontou 46 mm de diâmetro de minha aorta ascendente. Ou seja, o mesmo que o exame feito em São Paulo, um ano antes, registara.
Meu cardiologista, por meio de eco (que não permite a visualização de toda a parte dilatada da aorta) constatou, em março deste ano,  44,5 mm de diâmetro da parte visível. Disse que para o fim do ano mediríamos de novo.
Hoje minha aorta emplacou 44 mm. O 0,5 a menos é desprezível. Ou seja, tudo continua como antes.

No primeiro semestre de 2011, um cirurgião em São Paulo me garantiu que era urgente que operasse. Mais de 2 anos depois, estou com o quadro totalmente estável.

Sem que eu tivesse recorrido ao bispo Edir Macedo ou ao apóstolo Valdemiro Santiago.

Atualização (21/11/2013) - Meu hermano, Luiz Brandão, me alerta para o facto de ser Terezinha Morango (Miss Brasil 1.957) a Miss que aparecia na foto deste post.  E não Marta Rocha, Miss em 1.954. Eu poderia alegar que foi troca proposital. Afinal, já fiz isso em outros posts. Por exemplo este. Era uma imitação de procedimento muito utilizado pelo jornaleco Planeta Diário, da turma que mais adiante juntou-se ao pessoal do Casseta Popular e criou o grupo Casseta & Planeta, de saudosa memória na TV brasileira. Mas não foi. Foi erro meu, mesmo. Já corrigido.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O melão




Aproveitei esta segunda-feira para ir almoçar ao Geadas.

Parêntesis: Bragança tem excelentes restaurantes. Mas dois deles são superiores: o Solar e o Geadas.
Agora, então, que os dois filhos do casal que rege o restaurante entraram na orquestra, o Geadas está primoroso.

Cheguei um bocadinho tarde, como é de meu hábito.
Fui recebido como se fosse alguém muito especial e me foi sugerido um tornedor.
Tive, então, o prazer de passar quase uma hora em um ambiente bonito e tranquilo, mergulhado em um suave som de jazz.
Se as lascas de um presunto adorável, o queijo e algum salpicão abriram meu apetite, o prato principal me elevou ao cume da gastronomia.
Vinho e pão fizeram o contracanto.
Não fosse o possível desconforto, preferiria saborear esse tornedor ajoelhado no estrado de um genuflexório.
Ao menos seria mais justo.

Um bocadinho emocionado, resolvi completar a refeição com melão.

Emoção e melão levaram-me a recordações. Ainda mais que diante de mim, para além da janela do Geadas, reinava a paisagem das margens do Fervença. E a chuva começava a ceder lugar ao sol.

E me surgiu aos olhos da alma meu pai e minha mãe a saborear um melão espanhol. Era talvez o único dos luxos a que se permitiam.
Para eles, o melão era a exceção: aos filhos tudo; a nós o melão.

E sabíamos já que o melão era para os dois.

E gostava de vê-los saborear aquela ambrosia, com prazer e cumplicidade.

domingo, 3 de novembro de 2013

Egos em fuga

Primeiro eram egos em fúria.
Artistas brasileiros (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Roberto Carlos, Erasmo Carlos e talvez outros menos nobres) uniram-se em um movimento curiosamente chamado Procure Saber (ao que parece eles já acharam) com o expresso objetivo de não permitir que fossem liberadas, no Brasil, biografias não autorizadas pelo biografado ou seus descendentes.
Entendiam que deixar uma biografia dessas ser publicada para só depois buscar reparação judicial rendia pouco dinheiro.
E eles, como quase todo mundo, gostam de muito.
Quando a iniciativa deles começou a ser duramente criticada, começaram os recuos.
Chico Buarque, de seu refúgio em Paris, tratou de procurar a porta de saída:
- Posso não estar muito bem informado sobre as leis e posso ter me precipitado.
Parece que, domingo passado ou um dia qualquer desses últimos, Roberto Carlos, conhecido como O Rei (presumo que do Reino da Música porque do Reino do Futebol é o Pelé, que - por sinal - é muito ruim de música), deu uma entrevista à TV Globo para dizer que não é bem assim.
Tenho um amigo que quando quer, ironicamente, defender algum argumento absurdo, começa a argumentação com um:
- Veja bem!
Caetano Veloso, ao perceber que ia levar bola nas costas, soltou o verbo no jornal O Globo de hoje:

(clique na imagem para ampliá-la.
Mesmo assim ela não ficará em bom tamanho.
Não tenho culpa de Caetano precisar ser prolixo
para defender o indefensável)

Primeiro ele atira em Roberto:
- Atribuí a Roberto Carlos o fato de ter sido obrigado a chegar até ali. Eu, que sempre me posicionara contra a exigência de aprovação prévia para biografias.
O tiro ricocheteia em Chico Buarque:
- Chico era o mais próximo da posição dele [Roberto], eu, o mais distante.
Essa postura caetaneana me lembra aquela velhíssima anedota contada por José Vasconcelos:
O camarada roubou um porco e saiu em disparada, com o porco às costas.
Quando foi alcançado pelos que o perseguiam, perguntou:
.- Porco? Que porco? Tira esse bicho daí!

Caetano procura, no artigo acima, tirar o corpo fora. Não o do porco. O dele.
Isso graças a artigos como o de Ruy Castro:


E mesmo o de Janio de Freitas:


Para não dizerem que não mostrei o artigo a que Caetano também se refere, desta vez um bocadinho favorável a ele e aos demais trapalhões (o artigo de Fernanda Torres), aí vai a parte do texto que se refere ao nosso assunto. Antes ela fala de um livro que vai publicar e de outro livro, que dá título ao artigo.


Aos poucos a moçada vai tirando os respectivos da reta.

Não sei se é preciso, mas vou explicitar: gosto muito da produção de música popular de quase todos eles.
Neste último sábado, por exemplo, fiquei durante umas duas horas a ouvir e ver o show acústico MTV de Gilberto Gil.
Isso nada tem a ver com o caráter deles. Picasso, por exemplo, era excelente pintor mas...
Isso já é outra história. A que chegaremos, qualquer hora dessas.
Também acrescento que todos eles já produziram o que tinham para produzir.
Sendo assim, termino com o finalzinho do texto da doidivanas Barbara Gancia, sexta-feira última, também na Folha.



sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O mundo é tudo aquilo que é o caso




Novembro chegou. E, por quaisquer motivos que não atinjo, minha cabeça está recheada dos mais variados assuntos. Não consigo fixar-me em nenhum deles.
Parte desse tumulto mental deve-se ao facto de ter minha atenção voltada ao mesmo tempo para diversos lugares distantes. Vivo em Portugal. Mas tenho filha em São Paulo, irmãs em Florianópolis e Rio de Janeiro. Essa última, aliás, está a passar umas boas semanas na Califórnia. Conversamos bastante ontem por Skype.
Na costa Leste dos EUA tenho filha, genro e netas.
No Canadá, filho e nora.
Minha mulher está agora na Austrália, a visitar a filha e o casal de netos.
Faltam-me apenas vínculos familiares na Ásia e na África.
Sabe-se lá.

Ontem, ao reler um texto dos primeiros deste blogue, percebi que muita coisa mudou em meu jeito de escrever.
Claro, em Fevereiro este blogue completa dez anos. Só isso já explica a mudança.
Mas desde que passei a residir cá em Portugal, as alterações se multiplicaram na minha escrita.
Sou um pouco como aquele jogador brasileiro de futebol que veio jogar na Itália.
Esqueceu o Português e não aprendeu o Italiano.

Mas não foi só a forma que se transformou.
Minhas ideias também não cessam de redefinir-se.
Não tenho paciência para isso, mas se conseguisse fazer uma análise comparativa entre todos os posts que produzi, nesses quase dez anos, certamente encontraria inúmeras contradições entre vários deles.

Os que me conheceram cristão, recriminam que me tenha tornado ateu.

Os que me conheceram marxista-leninista me censuram por ter abandonado a Esquerda.

Fiquem eles todos, crentes nos mais variados mistérios, aferrados a seus mitos.

Quanto a mim, vou andar de bicicleta.