sábado, 30 de outubro de 2004

A dura vida de um blogueiro



Atendendo a sugestões, parti para o Haloscan. Espero que, agora, fique mais fácil comentar aqui. Já não sei se as Referências ("trackback") vão funcionar. Veremos.
Se me dão licença, vou trabalhar para repor os comentários que cá já estavam e sumiram. Tenho de acertar também os textos aí à direita. A mudança feita pelo Haloscan bagunçou um pouco as coisas.
Volto logo.
Adeusinho.

A solidão



Quando Serginho caiu no chão daquele estádio de futebol, eram dezenas de pessoas ali à sua volta, no campo, milhares nas arquibancadas, milhões a verem tudo pela TV.
Mas ele caiu só. Integralmente só.
Estava ligado no jogo. Sintonizado no curso da bola. Preocupado com idéias táticas. A quem marcar, como desmarcar-se. Estava em sociedade. Jogava um jogo de conjunto. Junto com outros. De repente, sentiu algo, dobrou-se para frente.
E ficou só. Só com sua dor. A dor que elimina o outro. Que se torna tudo.
Serginho era uma lateral esquerdo dos melhores que já vi jogar. E olha que vi Newton Santos, vi Junior, vi Serginho (do São Paulo, hoje no Milan), vi Roberto Carlos. Mas esse Serginho era muito bom. Jogador que jogava para a equipe. Que sabia decidir.
De repente, caiu. E, quando caiu, caiu só.
Sem comparações, sem paradigmas. Simplesmente caiu.
A gente vive a se socializar, passa a vida a relacionar-se. Disputa o amor dos pais. Corre atrás da aceitação dos amigos. Ama grandes amores. Procria. Trabalha. Cria. Desmancha-se pelos filhos. Eventualmente busca o Poder. Muitas vezes corre atrás de sua proteção. Sobrevive, enfim.
E um dia cai.
Só.

quarta-feira, 27 de outubro de 2004

Classificados RSP



Troco uma semana de trânsito congestionado em São Paulo por um pôr de sol em Passos. Aceito como parte do pagamento uns goles da bagaceira do Alípio.

domingo, 24 de outubro de 2004

Era uma vez - XV
Dra. Marlene e a anestesia ideológica



Dia desses, Fidel Castro caiu e fraturou o joelho. Tudo bem. Fizeram-se todas as metáforas possíveis e imagináveis sobre o episódio. Tudo bem. É justo que o pessoal tire sua casquinha em cima do velho.
Mas o que me chamou a atenção foi que ele pediu pra ser operado sem anestesia geral, pra continuar a liderar o país durante a cirurgia. Tascaram-lhe uma ráqui. Adormece as partes inferiores do corpo, não a cabeça.
Tenho cá minhas dúvidas. Será que o cérebro é melhor que as pernas pra liderar Cuba? Pelé, por exemplo, é o que é por causa – fundamentalmente – das pernas. Cérebro decididamente não é seu forte.
Tudo isso me trouxe à lembrança a doutora Marlene.
Estava eu enfurnado no Presídio Tiradentes quando soube da novidade. Havia um consultório dentário no presídio. E havia uma militante da ALN, a doutora Marlene, que era cirurgiã dentista. Como um mais um costuma dar dois, conseguimos que a “companheira” pudesse utilizar o dito cujo consultório para tratar os dentes dos presos políticos.
Pra mim, isso vinha a calhar. Apesar de – como transmontano – ter dentes de aço (isso é figurado, calma), estava com um molar aberto desde antes da prisão. O danado já me incomodava havia tempos. Volta e meia, pra conseguir dormir, tinha de enfiar um comprimido tipo AAS no buraco que se formara no dente. Logo pensei: “Chegou minha hora. Vou arrumar esta porra”.
Entrei na lista de espera pra consulta. No dia marcado, lá estava eu. A doutora Marlene examinou a cratera do meu molar e disse que teria de fazer tratamento de canal. Beleza. Era tudo que eu queria. Agendamos o dia do início do tratamento. Agradeci e voltei a minha cela.
Conversa vai, conversa vem, soube que doutora Marlene tinha lá seus critérios, digamos assim, ideológicos. Pra ser direto: ela entendia que anestesia era coisa de frouxo. Revolucionário que era revolucionário tinha que fazer tratamento de canal sem anestesia.
Desmarquei meu retorno e esperei pacientemente a liberdade pra procurar um dentista não ideológico.
O Fidel, que é o Fidel, aceitou a ráqui. Acho que ele devia ter feito a cirurgia no joelho sem anestesia nenhuma. Será que ele está a perder o fervor ideológico?

Difícil adaptação





Tanto no blogger UOL quanto no fatídico Mblog era bico colocar imagens no blog. Era só clicar uma vez e lá ia a foto ou o desenho. Cá no Blogspot tem um lindo botãozinho no qual - quando o mouse pára sobre ele - aparece a tranquilizadora mensagem: "Upload Image / File". Quando cliquei no dito cujo, surpresa: fui informado que deveria baixar um programa chamado Hello. Lá fui eu. Da primeira vez consegui mandar as imagens pro servidor numa boa. Ontem, ao pretender repetir a operação, ele (o Hello) empacou tal qual aqueles burricos das piadas. Diz que é preciso verificar meu e-mail. Clico em um botão "Verify e-mail", ele diz que vai me enviar uma mensagem. Não envia.
Hoje tive a idéia de criar outro usuário pra ver se o Hello desemburrava. Funcionou. Só que queria mandar minha foto (essa em que estou metido em meu primeiro terno) pro meu profile. Quando me dei conta, ela estava aqui, neste post.
A foto já está lá, no profile. Mas deixa que ela fique também aqui, como lembrança das surras que estou a levar deste Blogspot e seu temperamental Hello.

sábado, 23 de outubro de 2004

Era uma vez - Zero
Prefácio



É claro que sempre quis escrever sobre meus anos de militância e de prisão. No início, a emoção recente tornava a literatura impossível. Depois, outros empecilhos surgiram. Fui postergando. Passei a querer escrever sobre outras coisas. Por exemplo, pesquisei muito a respeito de Cipriano Barata, figura ímpar da independência brasileira (início do século 19). Talvez eu seja a pessoa que mais documentos tenha sobre esse personagem. Meu amigo Claudio Giordano - hoje um editor respeitável, vejam só - nunca se conformou por eu não ter dado conta dessa tarefa. Queria que eu escrevesse sobre Cipriano. Não consegui.
Com o surgimento dos blogs, resolvi criar o meu. Mas pra falar do cotidiano. Dia a dia. Nada mais amplo. Até que surgiu o dia 28 de julho. Lembrei-me de que era o aniversário de 33 anos de minha prisão. Afinal, blog não é pra falar do cotidiano? Falei.
E surgiram pessoas a perguntar se aquilo era verdade, se tinha ocorrido de facto.
Pus-me a contar episódios. E disso nasceu essa série de posts, espécie de folhetim. Mantive o título do primeiro post, o "Era uma vez".
Ocorre que - desde quando pensei em escrever memórias desse período de minha vida - o título delas saltou logo: "Topologia Trivial". Isso porque nunca vou esquecer de uma noite em que estava à janela da cela 12, pavilhão 2, Presídio Tiradentes e olhava o sentinela que andava sobre a murada do presídio, de um lado a outro. Ia e vinha. A lua brilhava cheia no céu. Pensei: esse camarada está aqui tão perto de mim e ao mesmo tempo tão longe quanto a lua. Não posso acercar-me nem de um nem da outra. E me veio à memória a topologia trivial, na qual todos guardam a mesma distância uns dos outros. Escrevi sobre isto aqui no blog, em tom de brincadeira.
Vou prosseguir com minhas memórias. Que sirvam pralguma coisa. Quando não, como catarse. Já nada espero do mundo a não ser um fim de vida em Passos, na felicidade do ninho. Amo meus filhos, minha mulher, meus netos e - acima de tudo - a vida. Prezo os amigos, reais e virtuais. Minhas lembranças confundem-se com meus sonhos. E me nutro de todos eles.

quarta-feira, 20 de outubro de 2004

Alguma coisa acontece no meu coração



Hoje almocei no tradicionalíssimo Brahma, na esquina de Ipiranga e São João. Pouca coisa mudou no ambiente. Até o pianista parece ser o mesmo de tempos atrás. Pelo menos toca tão sofrivelmente quanto.
Quando entrei, o recepcionista me deu um cartão magnético para o registro das despesas. Fazer o quê. Até o Brahma moderniza-se. Terrível foi receber, logo depois de paga a conta e sorvido o cafezinho, um cartão plástico vermelhão, com a inscrição em letras grandes e brancas: SAÍDA INDIVIDUAL.
É preciso entregá-lo ao armário humano que fica junto à saída.
Isso é o que chamo degradação dos costumes.

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

Eleições municipais em São Paulo - 2º turno



Dia 31 deste mês, teremos de escolher entre José Serra (PSDB, tucano, disputou a eleição presidencial contra Lulla) e Marta Suplicy (atual prefeita, PT). Já começou a propaganda de ambos na TV. Marta (ou melhor, seu marqueteiro, Duda Mendonça) ataca o facto de Serra ter como candidato a vice um sujeito que foi Secretário de Planejamento de Pitta (um desastrado prefeito anterior a Marta, uma espécie de Fernando Collor municipal). Serra (ou seus marqueteiros) rebatem Marta acusando-a de ter assessores que trabalharam para Pitta.
Fico a pensar: se ambos têm tanta gente próxima a eles que foi auxiliar de Pitta, por que não deixar o próprio Pitta governar, utilizando todo esse potencial humano que ele - magnanimamente - 'distribuiu' pelos atuais candidatos?
Para prefeito, Pitta.

Falta de curiosidade dá nisso



Hoje é domingo e eu estou aqui, a refazer meu blog. Aliás vou parar. Já cansei. Mas só pra desabafar: por que não me perguntei antes sobre o que era aquele "M" de Mblog?
Era merda.
Beijinhos a todos e boa semana.

sexta-feira, 15 de outubro de 2004

Quais suas características notáveis?



Hoje almocei com minha filha caçula. O que sempre é um prazer. E divertido, também. Não só porque contamos histórias engraçadas de nossos cotidianos. Além disso, tenho a satisfação extra de entrar no restaurante com aquele "mulherão" de 25 anos e notar os olhares de homens e de mulheres. Eles, invejosos. Elas, com nojo. Todos a pensar que estou com minha amante. Velho atrevido, devem pensar as damas. Velho de sorte, suspiram os cavalheiros. E, é verdade, nos amamos.
Ela me contou detalhes de seu atual trabalho. Como hostess de restaurante GLSBT (qualquer dia botam o alfabeto inteiro nessa sigla).
Não é fácil. O restaurante é muito concorrido. A espera é sempre grande. O público A-Z (vamos simplificar) é exigente. Se ela informa que a espera é de 50 minutos, que seja. Minuto a mais, protestos na certa. Ah. E nada de chegar perto do grupo de espera e gritar pelo nome do próximo felizardo a ocupar mesa. É preciso saber que o Abelardo anotado na lista de espera é o jovem de camisa cinza e ligeiramente calvo. E aí surge o problema.
Sempre que chega um novo grupo, ela pede o nome do - digamos - líder e anota na seqüência. Daí, discretamente, dá aquela geral na pessoa e grava suas principais características. Logo em seguida, já fora do alcance da visão do grupo, anota tais sinais ao lado do nome do "líder". Na hora de chamar o grupo a ocupar mesa, é só procurar pelo tal dono das características e pronto. "Sr. Fulano, sua mesa."
O carro enguiça quando o cidadão não tem características marcantes. Ela olha, olha e nada.
É isso. Há pessoas que não têm nenhum sinal característico. Nenhuma verruga na ponta do nariz, nem um pouco de estrabismo, nada. Rigorosamente nada.
É o seu caso?

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

A cavalo dado não se olham os dentes



Em fevereiro deste ano, resolvi começar um blog. Como meu provedor, UOL, oferecia essa possibilidade, fui eu.
Passado um tempinho, já conhecendo vários blogs, vi no Daniel Lima (um de meus blogs favoritos) que ele iria de mala e cuia para um tal de Mblog. Fui experimentar, gostei e mudei pra lá. O Mblog dava mais opções. O blog do UOL era meio limitado (ou era eu o limitado, sei lá). E foi com o blog no Mblog que passei a ser mais conhecido e a conhecer mais.
E aí foi o pecado mortal. Ontem, dia de nossa senhora no Brasil, eu ia escrever um post bastante crítico sobre a tal senhora e sua influência nefasta. Milagre. Meu blog sumiu. Só pode ter sido ela.
E tem mais. Eu, que trabalhei quase uma vida com computadores e sempre tive enorme preguiça de fazer backup, fui exigido em trinta e cinco dólares americanos para receber meus próprios textos de volta. É isso mesmo que leste, ó meu. O Mblog - pesaroso - disse que a brincadeira já era e quem quisesse um arquivo zipado com o conteúdo de seu blog tinha de morrer com essa pequena contribuição. Morri. Quem manda não fazer backup.
Agora, estou às voltas com um monte de arquivos com meus posts. Ainda preciso bolar como vou fazer a transposição. Palpites são benvindos, claro, claro.
Em meio a essa confusão, lembrei de um colega alemão (Fritz, óbvio) que tinha na Poli. Um dia disse a ele, durante conversa: "Cavalo dado não se olha o rabo". Ele, surpreso: "Engraçado, em alemão é cavalo dado não se olham os dentes." Pensei um pouco e entreguei os pontos: "Em português também."
De agora em diante é: "A cavalo dado não se olham os dentes, mas faz-se backup."

segunda-feira, 11 de outubro de 2004

Armadilhas



No banheiro masculino do escritório em que trabalho há vários mictórios. Junto ao registro de cada um deles afixaram uma recomendação:

ECONOMIZE ÁGUA
Acione somente este registro após o uso.


Eu, obediente, toda vez que uso um mictório desses só abro o registro daquele que usei. Nos outros, nem mexo.

sábado, 9 de outubro de 2004

Reflexões sexuais



Sexo oral ou sexo anal?
Nem um nem outro. De hora em hora é muito, pra mim. Agora, só uma vez ao ano, muito pouco.
(piada velhíssima, mas sempre tem alguém que ainda não sabe, né não?)
Definição de bordel:
Lugar no qual os meninos maus das famílias boas encontram as meninas boas das famílias más.
(Juca Chaves, show 'O Menestrel', décadas 50/60)
Sexo e Poder:
Sexo é coisa para amadores. Os profissionais preferem o Poder.
(Antonio Carlos Magalhães, senador baiano)
Problema? Eu?
Não tenho problema sexual. Tanto é assim, que faz seis meses que nem relação sexual eu tenho.
(personagem de filme de Woody Allen)

sexta-feira, 8 de outubro de 2004

Era uma vez - XIV
O Coletivo



Já falei no nº XIII sobre a organização do corró (presos comuns). Ele se estruturava mais ou menos como as hordas primitivas. Um chefe por cela – o leão – e a autoridade da força.Entre os presos políticos imperava a democracia direta, mais ou menos à moda da Grécia clássica. Os cidadãos atenienses reuniam-se na ágora – praça de debates e decisões – e resolviam tudo diretamente, sem a intermediação de representantes do povo. Não havia vereadores, deputados e senadores, funções de um mundo mais moderno, pelas quais há indivíduos dispostos a vender a mãe. Na Torre, lugar do presídio no qual ficavam as presas políticas, a tranca era só à noite. Isso quer dizer: durante o dia as celas ficavam abertas e as detentas podiam circular à vontade por todas as celas e mesmo pelo pátio. Ou seja, podiam discutir interminavelmente e decidir reunidas em assembléia.Nos dois pavilhões masculinos não. Era tranca brava. A gente só saía pra banho de sol uma vez por semana. Certo que mais tarde isso melhorou e – se não me falha a memória – chegamos a ter penso que três banhos de sol por semana. Mas nem entre as celas podia-se circular. Era cada grupo em sua cela. Claro que de vez em quando, mediante pequena contribuição para os minguados rendimentos dos carcereiros, a gente conseguia passar de uma cela a outra. Isso era o máximo de mobilidade possível.Resumo: nada de ágora. A discussão era feita valendo-se da Tereza. E aí, desculpem, mas é necessária pequena digressão.Não sei se até hoje é assim, mas no meu tempo de cadeia havia o costume de atribuir-se nome de mulher a coisas as mais variadas (meu deus, como faz falta mulher. É premente projetá-las em tudo). Pra não esticar muito: a já mencionada Torre, por exemplo, era “dona Júlia”. Agora, termo universal mesmo (nas cadeias brasileiras, claro, claro) era a Tereza. A Tereza é um meio de comunicação via cordas. Quem nunca esteve preso duvido que consiga imaginar quanta coisa se transporta por cordas. Talvez possa dizer que a Tereza era a nossa Internet, ou mais. Pequeno exemplo: você quer mandar uma caneca de café quentinho pro amigo de uma cela que fica um pouco afastada da sua. Você pega sua cordinha (pode ser um barbante grosso. Todo preso que se preze tem a sua), amarra um pãozinho adormecido (duro) numa ponta e o atira pro seu amigo, que a essas alturas está com os dois braços esticados pra fora do guichê da porta da cela. Ele recebe a corda, e fica a segurá-la, firme. Na caneca, você já colocou o café (até uma altura que permita a inclinação da caneca durante o percurso – há ciência e arte nisso). Você, então, enfia a corda por dentro da alça da caneca. Daí pra frente, meu caro, é malabarismo. Mas não se preocupe. No presídio você tem todo o tempo do mundo pra treinar isso exaustivamente. Você suspende levemente a sua ponta da corda e lá vai a caneca. Deu pra entender? Treine em casa. Quem sabe na próxima ditadura que vier por aí você não vai precisar saber fazer isso.Pois bem. A democracia direta, nos pavilhões masculinos, era exercida graças à Tereza. Alguém tinha uma proposta? Jogava no papel e punha pra circular pela Tereza. As celas tinham de discutir a tal proposta e todos votavam. Os votos podiam ser acompanhados de justificativas de votos. Assim, quando a coisa chegava nas últimas celas já tinha virado um calhamaço. E dá-lhe discussão. Discutia-se de um tudo. Tive a felicidade de esquecer tudo sobre os variados temas propostos. Mas dou um exemplo fictício que nada fica a dever aos que realmente eram postos em circulação: alguém lembrava que alguns dias depois era dia do soldado. A ditadura, por ser militar, iria comemorar efusivamente a data. Proposta: ficar sem falar com os carcereiros durante o dia do soldado pra manifestar nosso repúdio. Tipo assim, sacou?As decisões eram tomadas por maioria simples. Eram as Decisões do Coletivo. Tem de ser tudo em maiúsculas porque era sagrado, o troço. Uma vez tomada a decisão (o resultado era comunicado por outra viagem da Tereza), todo mundo tinha de cumprir o decidido. E todo mundo cumpria. Mesmo achando ridículo.Aos poucos, foi tornando-se nítida uma divisão dos presos em dois grupos. Havia os que pretendiam prosseguir a revolução mesmo presos. Era o pessoal da ALN, o frei Betto (não digo “os dominicanos”, porque nitidamente os outros dois – o Fernando e o Ivo - estavam em outra, mas eram dominados pelo Betto. Ainda vou falar sobre isso outro dia. Pode crer), a Ala Vermelha e avulsos variados. E havia nós, a maioria do POC, os mineiros do MRM, os velhos do Partidão e outros avulsos, que pouco a pouco fomos aceitando, muito a contragosto, é verdade, que tínhamos sido derrotados de modo definitivo. Era preciso, a nosso ver, aproveitar o tempo de prisão (que ainda não sabíamos qual seria) para pensar, estudar, refletir. Pra isso você precisa de condições de vida minimamente decentes. Queríamos obter condições carcerárias melhores. Negociar com a repressão essas melhorias. O primeiro grupo não: queria piorar as condições carcerárias pra poder denunciá-las na imprensa de Paris (no Brasil, é óbvio, nem pensar). Me lembro de um dia em que escorreguei uma grana pro carcereiro e fui à cela do frei Betto, a convite dele (acho que ele queria sondar quem era aquele sujeitinho) e constatei que havia uma goteira no teto da cela. Ingenuamente propus: chama o carcereiro e manda arrumar isso. E ele: não! Deixa assim. O Evaristo Arns (era o arcebispo de São Paulo na época e fazia visitas ao presídio. Tinha o privilégio, não concedido a outros mortais, de ir até a cela dos dominicanos) vem aqui qualquer dia desses e vamos pedir que fotografem essa goteira pra mostrar as péssimas condições de vida nesta cadeia. Percebi que falávamos línguas diversas.E a vida seguiu seu curso. O coletivo, decididamente, era um saco. O objetivo maior da turma do botar-pra-quebrar era fazer greve de fome. Nunca vi ninguém gostar tanto de uma greve de fome. Qualquer coisa (o carcereiro tal olhou esquisito pro companheiro qual) era motivo pra proposta de greve de fome. Aos poucos, conversa daqui, conversa dali, fomos ganhando adeptos pra nossa idéia de um presídio mais ameno, no qual fosse possível produzir alguma coisa proveitosa. Principalmente a Ala Vermelha mostrou-se receptiva a esse nosso papo. E como eles eram muitos, a relação de forças no Coletivo foi sendo alterada gradativamente. “Eles” já não conseguiam aprovar todas as besteiras que propunham. E chegou o dia em que se divulgou (pela Tereza, é claro) que alguns companheiros seriam transferidos, que isso era uma ameaça, que esses companheiros poderiam simplesmente sumir etc etc. Proposta: greve de fome pra evitar a transferência dos companheiros. Tereza vai, Tereza vem, “eles” – pela primeira vez em votação importante – perderam. E perderam feio. Só o pessoalzinho da ALN e os dominicanos (mais uns trotskistas que tinham acabado de chegar no presídio e não estavam entendendo nada) votaram a favor. Todo o resto foi contra. A gente só não deu festa porque não tinha como. Foi lavada. Claro que não lembro dos números, mas foi algo tipo 70% a 30%. Ou mais. Pensamos: daqui pra frente, vamos fazer as coisas do jeito certo. Chega de presepada.Ledo engano. Os caras – pros quais o Coletivo sempre fora o deus – disseram que não aceitavam o resultado e iam partir pra greve de fome sozinhos. É claro que tinham como perspectiva constranger todo mundo a seguir com eles. Deram-se mal. Todo mundo ficou firme (não foram eles que sempre insistiram na predominância do Coletivo?). Eles foram transferidos de presídio. Claro que pouquíssimos dias depois abandonaram a tal greve de fome e voltaram a conviver conosco. Mas a maioria estava consolidada. Fizeram biquinho mas pararam de encher o saco.Agora, vamos ver como o inefável frei Betto fala disso em um de seus inolvidáveis livros:
Sexta-feira, 12 de maio de 1972
Hoje às zero horas, iniciamos greve de fome, contra o isolamento de companheiros que desde ontem começaram a ser transferidos para a Penitenciária Estadual. Desconfiamos que esta medida porá em risco a vida dos companheiros transferidos. As condições na Penitenciária são bem piores que as do presídio Tiradentes. Por que um “gueto” de presos políticos?Ontem nos deixaram Mané Cirilo, Celso Horta, Chico Gomes, Altino Dantas e Alberto Becker. Hoje de manhã seguiram Gilberto Beloque, Manuel Porfírio, Antônio Espinosa e Vicente, o espanhol.Participam da greve as celas 16, 17, 21, 19, 3 e 1. Alguns companheiros da cela 2 e 6 aderiram e foram transferidos para uma daquelas celas. Boa parte dos presos políticos também participa. O resto do pessoal tem outra maneira de pensar...
(Cartas da Prisão, Editora Civilização Brasileira, 1977, página 39. Sabe que agora que reparei que o meu exemplar é o número 5? Será que vendeu mais de meia dúzia?)
Esse último parágrafo é brilhante. Depois de enumerar pormenorizadamente as celas participantes da greve, acrescenta: "boa parte dos presos TAMBÉM participa." Pensa bem. O que significa isso? Se as celas tais e quais participam, como “boa parte” “também” participa? Mais: conta só quantos números faltam na enumeração do moço (as celas iam de Zero a 21). Precisa mais? E a decisão do Coletivo? Nem sequer é mencionada. E as reticências finais. Repare o nojo a escorrer delas. “O resto do pessoal”, queridinho, era a esmagadora maioria. Essa maneira de fazer política é preservada pelos freis bettos da vida que hoje estão aboletados no poder. É isso.

quarta-feira, 6 de outubro de 2004

Cidão, eu aceito



(Antes de mais nada, o benefício da dúvida: se o candidato a vereador Alcides Fonseca, de Santos, não sabia o que faziam em seu nome, ele que me desculpe pelo que vou escrever em seguida. De qualquer forma, se não sabia, é preciso dizer que era de se esperar que tivesse mais controle sobre sua campanha, já que se oferecia para ser legislador de uma cidade.)
Vamos aos factos: recebi, no Orkut, antes das eleições, um spam, enviado por Everton São Pedro (e-mail: espc_ton@hotmail.com) com o seguinte teor:
Pessoal, em outubro temos eleições e precisamos fazer valer o nosso voto. Para vereador temos Alcides Fonseca, o Cidão, 45005. Vamos votar no Cidão e ter a certeza de uma boa política.
Antes, os candidatos emporcalhavam as ruas, praças, avenidas com cartazes, faixas e o scambau. Agora, claro, adotaram também o spam. O indivíduo quer ser legislador de uma cidade, propor e aprovar leis, fiscalizar o funcionamento do executivo, e pra conseguir seu voto pra chegar lá, começa por desrespeitar os mais elementares princípios do bom comportamento social, digamos assim.
Fiquei com raiva, confesso. Respondi ao tal “Everton” expressando toda minha revolta. Digamos que fui agressivo (adoro eufemismos). Terminava assim, minha resposta:
É o país dos espertos! Viva! E todos cada vez vivendo pior. Inclusive o Cidão, que não se vai eleger e vai ficar devendo até o rabo.Vai Brasil! Medalha de ouro em esperteza!
Pra minha surpresa, recebi réplica. Nela, o spammer Everton oscila entre a vontade de me mandar solenemente à merda e seu objetivo de cativar eleitores pro Cidão. Se ele soubesse que não voto em Santos, mas em São Paulo, teria detonado.
Final da história: o Cidão não chegou lá. Ironicamente, teve mais votos que o último dos dezessete eleitos. Mas como a eleição é proporcional, vai ter de ganhar a vida de outra maneira. Teve 1.442 votos. Dezesseis dos eleitos tiveram mais de 2.000 votos. O último, o Carabina (é, isso mesmo), teve 1.148. O Cidão é tucano. O Carabina é do PRP e disputou pela coligação PL/PRP. No PSDB, Cidão é apenas o quarto suplente. Vai ter que morrer muita gente pro Cidão emplacar. Pobre Cidão.
Pobres de nós. Além do Carabina, foram eleitos o Jama-Vereador-Sem-Salário (esse é o nome dele, fazer o quê), segundo mais votado e aquela filha do Pelé que ele só reconheceu judicialmente (Sandra Arantes, quinto candidato mais votado).

domingo, 3 de outubro de 2004

Dever cumprido



O presidente Lulla está faz ano e meio a tentar implantar o Fome Zero.
Eu, modéstia à parte, em dois minutos instituí o Voto Zero:

Prefeito : 00 CONFIRMA
Vereador: 00 CONFIRMA

sábado, 2 de outubro de 2004

Acertando os ponteiros com mamãe



Vem cá, mãe. Fica aqui, pertinho de mim, que eu quero dizer umas coisas. Sabe, hoje arrumei um tempinho pra gente conversar. Faz tempo que tenho essa vontade de fazer uma espécie de acerto de contas, de esclarecer alguns factos, ou não esclarecer mas tirar da frente, falar sobre eles por catarse, pra descarregar.
Não sei se a senhora sabe, mas tenho culpas que vêm lá do meu parto. A senhora era magra, rosto lindo adornado por esse cabelo preto, preto. Depois que nasci, ficou gordinha. Nunca mais voltou àquele ar de mocinha que os dois partos anteriores não lhe tinham roubado. Sei que não podia fazer nada, mas me culpo. De algum jeito, me culpo.
Mas deixa pra lá. Vamos falar de coisas boas. Sempre me vali de sua proteção em relação a papai. Ele era muito severo. Qualquer coisa, cinta. Já a senhora não. Só dava chinelada. E mesmo assim, lembra?, quando vinha de chinelo em punho tinha o cacoete de pôr a língua pra fora e mordê-la de raiva. E eu a imitava e a senhora punha-se a rir. Pronto, talvez uma chineladinha. Já a segunda se dissolvia em perdão.
Lembra do exame de admissão ao ginásio? Papai tinha certeza de que eu não entrava no Colégio Canadá nem matando. Achava que eu não estudava, não me esforçava, coisa e tal. Aí ele fez a besteira. Me prometeu uma bicicleta, se eu passasse no exame. Porra (desculpa aí, mãe, sei que a senhora não gosta de palavrão). Justo pra mim, cujo sonho maior era uma bicicleta. Lembra?, tinha o exame de Português, eliminatório. Quem passava, prestava os outros exames: matemática, história e geografia. Fiz o exame de Português, voltei pra casa e encontrei o pai ansioso. Queria saber tudo que tinha caído no exame e quais tinham sido minhas respostas. Fui explicando as questões, uma a uma. Me lembro de ter me referido a uma questão que, de tão fácil, eu não entendia porque tinha sido posta no exame. Perguntava-se, a propósito de algumas formas imperativas afirmativas, como seria a negação delas. Algo do tipo: “Pendura”. Qual a negativa? E eu não tive dúvida: “Não pendura”.
Meu pai queria me matar: eu sabia. Esse garoto está reprovado. Eu sabia. E disse cobras, talvez lagartos. Nem me lembro bem, claro.
Domingo seguinte, lembra? mãe, a senhora talvez não lembre. Eu, jamais vou esquecer. Fomos à banca de jornais comprar A Tribuna pra ver o resultado da prova. Puta que pariu (desculpa aí, mãe), eu tinha sido o primeiro colocado. Empatado com um garoto português, pode? Papai, óbvio, sentiu a vaca caminhar ao brejo. Bicicleta à vista. E veio querer negociar, o puto (porra, mãe, perdão, extrapolei). Não queres um relógio, ao invés da bicicleta? Foi a senhora, mãe, foi a senhora que me abriu os olhos. Não, filho. Fica com a bicicleta. Não troca por relógio não.
Aquela bicicleta foi uma das coisas mais significativas de minha vida. Será que é exagero dizer isso, mãe. Acho que não, sabe. Lembra?, um dia me roubaram a bicicleta. Caralho (desculpa, mãe), foi um sentimento de perda fudido (perdão aí). Mas o Luiz Carlos, meu amigo, lembra?, achou o cara com a minha bicicleta e fez o cara devolver. Lembra? Só naquele tempo essas coisas aconteciam.
E foi tanta coisa daí em diante, né mãe. A senhora me arranjou o primeiro aluno particular de matemática. Foi a primeira graninha que eu descolei com meu trabalho. Claro, não vale contar o que eu ganhava da senhora engraxando sapatos. Porra (perdão), o aluno era ótimo. Foi uma estréia profissional muito feliz.
Agora, quando a gente veio morar em São Paulo, durante o tempo em que fiz a Poli, essas a senhora tá me devendo. Era terrível. Eu chegava três, quatro da manhã, entrava na pontinha dos pés pra não acordá-la. Quando ia fechar a porta do meu quarto ouvia aquele suspiro profundo vindo de seu quarto. Aquilo rasgava o coração.
Descontei quando saí de casa. Final da Poli, resolvi morar sozinho. Afinal, já era um velho de quase vinte e dois longos anos. Lembra? mãe. Essa tenho certeza que a senhora lembra. Encostei o caminhão de mudança na porta de casa, os homens botaram minha cama e aquele sofá-cama vermelho (lembra?) em cima do dito cujo e tchau. Lá fui eu. Tão radical que nem quis lhe dar meu endereço novo.
Talvez tenha sido por isso que, alguns aninhos depois, quando fui morar num aparelho (lembra?, era como se chamavam as casas dos militantes clandestinos na época da barra pesada da repressão) e avisei a toda a família que não daria meu endereço a ninguém, porque era sigiloso, a senhora não quis saber: quis o endereço. E eu dei. Puta merda (desculpa aí, mãe), podia ter colocado a senhora numa tremenda fria.
Por falar nisso, e a época do presídio. Aí é claro que a senhora lembra, né não? Um ano e meio levando cigarro pra mim, a senhora, que considerava o tabaco um pecado. Pô mãe, fala sério, naquela fase a senhora se superou. Foi demais. Qualquer coisa que eu pudesse reclamar da senhora antes, morreu aí. A senhora foi foda (puta que pariu, desculpa).
Depois teve os netos. Aí eu retribui, certo? Cada neto. Caprichei, hein mãe. Concorda?
Porra (desculpa) já tá escurecendo Preciso ir. Um beijo, mãe.
Levantou, beijou a flor, inclinou-se e depositou-a no túmulo.
Depois, saiu caminhando, devagar.
O vigia tinha pressa.
O cemitério já ia fechar.


Só às vezes




Coincidências



E tem gente que não acredita em coincidências. ‘Magina...
Vê só:
Casei, pela última vez, quando já tinha três filhos (em português fica dúbio. Em inglês, escreveria ‘last’, que é a última pra valer. Fica pra ‘latest’ a função de ‘mais recente’, a saber, a ‘última até agora’. Ben/mal dita dubiedade). Minha mulher também tinha três filhos. Os dela nasceram em 74, 76 e 78. São duas mulheres e um homem. Os meus nasceram em 75, 77 e 79 e são duas mulheres e um homem.
O filho mais velho de minha mulher nos deu um neto.
Minha filha mais velha nos deu uma neta.
Minha mulher tem duas irmãs.
Você já adivinhou: tenho duas irmãs. Se fosse só isso, vá lá. Acontece que minha irmã mais velha recebeu um nome começando por A. Veio a minha sogra e colocou em uma das irmãs de minha mulher o mesmo nome, só que começando por E. Minha outra irmã recebeu, ela também, nome começando por A. Não satisfeita, minha sogra colocou em minha mulher o mesmo nome de minha segunda irmã, só que começando por? Certo: E.
E tem gente que não acredita em coincidências. ‘Magina.