sexta-feira, 29 de abril de 2005

O avesso de um blog


Minha irmã mais velha sempre foi muito crítica de si mesma. Aos 25 anos já se achava uma velha. Lá pelos 40 já reclamava dos terríveis efeitos da lei da gravidade etc e tal.
Belo dia, foi ao médico. Revisão geral. Levou aquele monte de exames e aguardou as péssimas notícias que o médico certamente lhe daria. Pra surpresa dela, o médico disse que ela estava ótima. Tudo funcionando maravilhosamente bem.
Ela não se deu por achada:
- Doutor, se estou tão bem assim, por dentro, não dá pro senhor me virar do avesso?

Foi nisso que pensei, agora há pouco, ao ler os comentários aos posts anteriores. Afinal, os comentários são algo assim como o avesso de um blog. Ficam escondidos da primeira leitura mas determinam muito do caráter do blog. Quase se poderia dizer de um blog:
Dize-me quem (e como) te comenta e te direi quem és.
Se realmente isso é verdade, estou muito bem. Só quero que saibam que nem sempre respondo aos comentários não porque não tenha o impulso de fazê-lo. O problema é que muitas vezes eles me embasbacam.
Mas adoro meus comentadores, pode crer.
Será que dá pra virar este blog do avesso?

quinta-feira, 28 de abril de 2005

Que significa 25 de abril?


Vanessa, a menina do Sopa de Letrinhas, nascida com o dom da escrita, pergunta (comentário no post aí embaixo):
- Eu não sei o que se deve comemorar em 25 de abril...
É o seu aniversário?
Vanessa: de certa forma, sim. O 25 de abril (de 1.974, você nem era projeto de gente ainda) foi o dia em que os portugueses resolveram que já bastava de uma ditadura que ocupara boa parte do século 20. O primeiro ministro, Salazar, foi causa e efeito de um certo espírito português que demorou a superar-se.
Nessa época, eu mal completara um ano de liberdade. Tinha saído da prisão no início de 1.973. Fiquei feliz ao saber do desmoronamento da ditadura de Salazar. Aqui, no Brasil, teríamos de esperar mais uns onze anos pra alcançar o regime democrático.
Duas historinhas me vêm à lembrança:

Uma, meu pai contava quando eu era criança (e eu já a repeti em algum blog por aí). Durante a segunda guerra (1.939-1.945), Salazar colocou Portugal em posição de neutralidade entre o Eixo (Alemanha, Japão e Itália) e os Aliados. Suas preferências eram claramente pró-Eixo mas Portugal não estava com essa bola toda pra entrar na guerra ao lado dos nazistas. Mas – dizia meu pai – o povo português torcia pelos Aliados, em silêncio (penso que isso deve ser meia verdade, mas deixa pra lá). O facto é que um dia, em uma sessão de cinema na cidade do Porto, era projetado na tela um noticiário sobre a guerra, a mostrar vitórias dos Aliados. A platéia ansiosa para aplaudir. Mas silente, com medo das possíveis punições em caso de manifestação contrária ao Eixo. Até que um gaiato acabou com o impasse:
- Viva o Futebol Clube do Porto!, gritou no meio da platéia.
E o cinema em peso:
- Viva! Viva!

A outra eu soube de fonte mais próxima. O Estadão, na década de 60, tinha um editorialista português, Miguel Urbano Rodrigues, comunista notório. Aliás, sempre que alguém lhe perguntava como um comunista podia ser editorialista de um jornal conservador como o Estado de São Paulo, Urbano contestava:
- Sou um mero linotipista.
Pois vai daí, em 61 um certo capitão Galvão, em Portugal, rebelou-se contra a ditadura salazarista e acabou por tomar de assalto um navio – o Santa Maria – levando-o para perto de Recife, em águas brasileiras. O doutor Julinho, dono do Estadão, destacou Urbano pra cobrir o feito. Imaginou que, como português e super anti-Salazar, conseguiria boas matérias para o jornal.
Urbano foi para Recife, entrou em contato com o navio e conseguiu que Galvão o recebesse a bordo, para entrevista. Doutor Julinho, em São Paulo, não continha o entusiasmo e a ansiedade pela publicação do furo jornalístico.
Passado um breve período de alta ansiedade, chega um telegrama do Urbano:
- Aderi.

terça-feira, 26 de abril de 2005

Três microcontos pra comemorar o 25 de abril


Amou daquela vez como se fosse a última. E morreu antes do final de Construção.

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Precisava esquecê-la. Colocou as cartas em uma caixa. Trancou a caixa. Jogou a chave no rio.
Mas as cartas não eram as dela. A caixa que trancou era outra. O rio estava seco.

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O menino, ao tentar embocar a bolinha de gude no buraco, nem imaginava em quantos buracos a vida o meteria.



segunda-feira, 25 de abril de 2005

Destino


Começou a experimentar a vida com cuidado. Aos poucos. Esticava uma aventura aqui, outra audácia ali. Não ousava exageradamente.
A partir de um certo ponto, as coisas se precipitaram. Ele deslizou na correnteza. Tentou planejar. Deu com os burros n’água. Tudo saía pela culatra.
Percebeu que era mais prático adaptar-se ao ocorrido. Foi o que fez.
Funcionou. Mais ou menos.
Aproveitou os bons momentos. Reclamou, baixinho, dos instantes desagradáveis.
E seguiu.
Depois do sexto dia, olhou pra trás.
E viu que era bom.
Descansou, então.

sábado, 23 de abril de 2005

sexta-feira, 22 de abril de 2005

Dicas da semana


Dê um pulinho à Rua da Judiaria e leia este post.
Depois de enxugar as lágrimas, leia o texto O primeiro dos óbvios no Querido Leitor, da Rosana Hermann. É um post do dia 20.04.2005. Mas você tem de rolar bem pra baixo, porque eu não sei como isolar o post e a menina escreve feito metralhadora. Mas vale o - digamos - esforço.

quinta-feira, 21 de abril de 2005

Notícias do céu


Nosso correspondente Fred Nietzsche traz uma notícia boa e uma ruim. Comecemos pela má:
Deus morreu.
A boa:
Não vai haver aquela chateação de conclave de papas defuntos (não confundir com papa-defuntos, que é outra coisa) pra escolher o novo deus. Nem fumacinha preta ou branca. Fumaça no céu é sinal de chuva ou neve.
Na realidade (ou seria na celestialidade?), ninguém sabe como será a escolha do próximo deus.
Os brasileiros acham que Fernando Henrique seria um luxo só. Pena que ainda não chegou lá.
Quanto aos portugueses, parece unânime o apoio à candidatura de Mourinho.
Já os americanos pensam que Bush deveria intervir no céu. Depois de instaurada a verdadeira democracia, aí os querubins, serafins, o diabo-a-quatro (epa!) escolheriam livremente o deus que o Bush recomendasse.
Tony Blair concorda.

Tiradentes


Hoje, no Brasil, é feriado. Comemora-se (!?!) o enforcamento de José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, ocorrido em 21 de abril de 1.792.
Se fosse hoje, considerando-se os avanços da odontologia, a alcunha dele seria algo do tipo Tratacanal.

Quase


Estava prestes a atingir a sabedoria quando morreu.

Notícias do Vaticano (extra)


Sem dúvida, essa receita de refeição infantil é abençoada:
Papa e água benta.
Ou será "Papa e água bentos".
Sei lá.
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O Zé Ratz disse alguma vez, em algum lugar, que as outras igrejas cristãs não podem ser consideradas irmãs da ICAR.
Isso porque a ICAR seria mãe das demais. Não irmã.
Fica a dúvida: e quem é o pai?
Se não foi Deus, pega mal. Passa imagem de uma ICAR um tanto promíscua.
Se foi Deus, fica provado que Deus f*@#% a ICAR para criar as seitas evangélicas. O que não deixa de ter lá seu sentido, em termos históricos.
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Obs: nosso cardeal infiltrado não agüenta mais esse negócio de conclave, urbi et orbi e o escambau.
Acho que ele vai cair fora e nós vamos ficar sem notícias. Enquanto rolou uma fumacinha ele estava na boa.

quarta-feira, 20 de abril de 2005

Notícias do Vaticano


(do nosso cardeal infiltrado)
Até que enfim! Desde a minha mais tenra infância (sempre quis usar essa expressão. Aliás, "tenra" é adjetivo que só serve pra qualificar certas infâncias e o baby beef do Rubaiyat). Mas como dizia, desde a mais tenra infância que ouço a pergunta: "Será o Benedito?". Minha mãe, por exemplo, a utilizava em situações de uma certa perplexidade e exasperação. Se um filho demorava muito no banho: "Será o Benedito? Não terminas nunca esse banho?"
Passados todos esses anos, tenho a resposta.
Sim. Será o Benedito. Dezesseis.
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Jura nosso correspondente no Vaticano que aconteceu: o Zé Ratz tava passando por um grupo de cardeais. Um deles, não muito simpatizante do dito cujo, sussurrou:
- Sebento.
Ratz pensou ter ouvido o Espírito Santo:
- Sê Bento.
Não deu outra.
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Mais besteiras a qualquer momento, em edição extra-ordinária.

domingo, 17 de abril de 2005

Videntes: onde estão vocês?


Todo final de ano é a mesma lenga-lenga: a TV é inundada por pais&mães-de-santo, quiromantes, astrólog@s, cartomantes, buziólog@s (devia haver essa palavra, né não?), o diabo. Explicam como vai ser o novo ano, dizem que vão morrer personalidades com tais e quais características (tudo sempre convenientemente vago), ameaçam com algumas calamidades tipo terremotos, coisa e tal. Informam que alguma estrela de primeira grandeza do mundo artístico vai ter filho e por aí afora.
Recebem seus cachês, fazem seu marketing e a vida continua.
Hoje me ocorreu o seguinte: a imprensa está perdidinha da silva em relação à eleição do novo papa. Ninguém consegue informação confiável. Por que não chamar essa turma do ramo da adivinhação? É simples: um famoso pai-de-santo ou uma famosa vidente chega no programa do Faustão (ou em outro qualquer) e diz: o novo papa vai ser o cardeal José da Silva. Sua eleição será concretizada no dia tal. Ponto. Problema resolvido.

MAKEPOVERTYHISTORY


Que me perdoem meus amigos Asulado e Baeta, que promovem em seus blogs esse movimento.
Pra mim, muito mais realista é POVERTYMAKEsHISTORY.

sábado, 16 de abril de 2005

Ex-Libris da Tugosfera


Não se recusa corrente passada pela saltapocinhas. Portanto, vamos a ela:
1. Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Já que a Pékala, do Neurotic, queimou tudo do Paulo Coelho, só me sobraram os textos sociológicos do Fernando Henrique Cardoso, que talvez ele mesmo já tenha queimado.
2. Já alguma vez ficaste apanhadinha(o) por um personagem de ficção?
Muitas vezes. Pra citar duas, que deram nome a filhos meus: a Letícia, do conto Final del juego (que dá nome ao livro), de Cortázar. Dele também, mas no Rayuela, Horacio Oliveira, claro, claro.
3. Qual foi o último livro que compraste?
Cito três. Um comprado, dois ganhos. Todos de blogueiros. Estou digerindo os três aos poucos, como convém. Comprado: Contos de Oficina 33, de dezesseis autores, entre eles a Rosane Netto de Aguirre, a Ane Walker, do Cabezas - Egoísmo coletivo, no Cabeza Marginal.
Ganhos: O dia em que o mar desapareceu, do José Carlos Barros (Prêmio Manuel Teixeira Gomes - 2002, Conto - 2º prêmio). José Carlos é ele mesmo, o poeta de Presa do Padre Pedro.
Last but not least, Dezamores, contos e poemas de dez autores, entre eles o Branco Leone.
4. Que livros estás a ler?
Além dos que citei acima, estou digerindo História da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV, de Henrique da Gama Barros. Demora um pouquito porque são onze volumões. Me deleito, vez em quando, com o álbum que me deu minha mana Léa, Parques e reservas naturais de Portugal. E tenho o hábito de pegar livros a esmo nas prateleiras da biblioteca cá de casa, ler um pouquinho e parar. E assim se vai.
5. Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?
Não dá pra instalar Internet banda larga nessa ilha?
Se não dá, cinco livros:
Camões, obra completa (Aguilar), Fernando Pessoa, obra poética (Aguilar), Borges, tudo que desse pra carregar, Grande Sertão:Veredas, Guimarães Rosa e Millor Fernandes (Millor Definitivo, A Bíblia do Caos).
6. A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?
Essa é fácil.
Primeiro, Ordisi, pra aprender a não passar dildos pros amigos.
Segundo, Branco Leone, que não escreve nunca o conto que pedi, sobre batom em cueca.
Por fim, Susana Paixão, só porque estou com saudade dela.
E chega de corrente.

sexta-feira, 15 de abril de 2005

Parabéns


Dizem que se cunhado fosse coisa boa não começava do jeito que começa.
Há exceções.
Faz anos hoje o Maurício. Sou cunhado dele. Até aí, nada. Mas é que, além de ser um papo excelente, o cearense Maurício é do primeiro time da Matemática no planeta. E, então, pra que os leitores desse blog conheçam algo de brasileiro além do Robinho, do Ayrton Sena e do Guga, lá vão algumas dicas sobre esse brasileiro:
Presidiu o CNPq de 1979 a 1980.
Presidiu a Academia Brasileira de Ciências de 1.981 a 1.991.
Conselheiro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, de 1.996 a 2.000.
Resumo, o curriculum vitae dele é este aqui.
Hoje ele completa oitenta e quatro. Trabalha muito, produz muito. Mundo afora. E ainda encontra tempo pra plantar em seu sítio de Petrópolis.
Abração do cunhado corujão.

Era uma vez - XXIII
Baixinho e a Palhaçada


João Batista de Souza (pô, Baixo, será que ainda lembro direito teu nome?) foi militante da VAR/Palmares. Moreno, um metro e cinqüenta ou pouco mais, bigode cuidadosamente cultivado, sorriso de ironia pra lá de fina, aprendeu muita coisa na juventude. Esqueceu de aprender o que era medo.
Sei quase nada sobre sua vida. Sei que entrou pra militância política de cabeça, tronco e membros. Participou de uma porção de ações armadas. Trocando em miúdos, assaltou bancos, participou de seqüestros, o escambau.
À medida que a esquerda foi se desmilingüindo, Baixinho foi assumindo cada vez mais responsabilidades. Belo dia, Baixinho estava a morar em uma casinha minúscula, abarrotada de armas: revólveres, pistolas, muita munição, metralhadoras, bombas etc etc. Por caminhos que não vêm ao caso, a repressão chegou. Cercou a casa. Deu voz de prisão ao Baixinho. Ele respondeu atirando. Transformaram a casa em peneira. Baixinho resolveu apelar para as bombas. Pegou a primeira e lançou. Fez puuuf e nada. Lançou a segunda. Idem ibidem. Desistiu das bombas. Gastou toda a munição de que dispunha. Quando tudo acabou, saiu de mãos para o alto, melhor, de mão para o alto: com a outra segurava uma maçã.
Quando a VAR/Palmares foi a julgamento, em tribunal militar, o famigerado juiz Paiva no comando da pantomima, Baixinho era um dos menos importantes entre os militantes julgados. O julgamento cumpriu seu rito. Quando os juízes se retiravam da sala para deliberar sobre as penas, Baixinho virou-se para alguém a seu lado e comentou, em decibéis não suficientemente reduzidos:
- Isso aqui é uma palhaçada.
Não deu outra. Os juízes voltaram e o Paiva começou a ler as penas: fulano dois anos, beltrano três anos, cicrano dois anos etc etc, todos nesse diapasão.
De repente, pausa e:
- E, para deixar claro que isto aqui não é uma palhaçada, João Batista de Souza, DOZE anos.
Ô comentariozinho caro!
Baixinho pegou mais penas em outros processos. Aos poucos, chegou (se não me falha a memória) a qualquer coisa em torno de cem anos de condenação. Era resistência à prisão, ações armadas, tentativas de assassinato etc e tal. Só não sei se houve condenação pelo fato de ter se entregado comendo maçã. Particularmente eu, penso que deveria haver punição severa pra isso. Sempre deixei isso claro pro Baixo.
Resumo: o Baixinho era o cara que todo mundo achava que jamais sairia da cadeia. E o que mais doía na gente é que, quando chegava a visita de sábado, das famílias, o Baixo tinha de ficar na cela, sozinho. Era um dos poucos que não tinham parentes, não tinham ninguém. Portanto, não podia descer para o pátio.
Claro que a gente não ia deixar isso ficar assim, né mesmo? Começou o movimento pra arranjar visita pro Baixinho. Alguém arrumou uma menina que se dispôs a visitá-lo. Acho que se chamava Rosângela. Sei lá, sei que era a Rô. Não é que ela se apaixonou pelo Baixo?!? O cara era muito feio! Fazer o quê.
(se ele ler isto aqui ele me trucida)
E eis que o Baixinho virou rei. Recebia visita e bolos, tortas, doces, o diabo.
Mais: os processos dele subiram pro Superior Tribunal Militar (no qual os julgamentos eram menos políticos e mais técnicos) e ele foi sendo gradualmente absolvido.
Resultado: belo dia, chega o carcereiro e chama o Baixo.
Rua, meu. Rua.
Meu deus, até hoje dá vontade de chorar, tamanha a alegria que dominou todos na cela.
Beijo, Baixinho.

quarta-feira, 13 de abril de 2005

Era uma vez - XXII
Bilhetes a Celina (3)


Às vezes, o humor tem a função de aliviar a dor. Como neste curto bilhete de 24/01/72, véspera dos 418 anos da cidade de São Paulo:
Oi!
Ainda bem que amanhã é feriado! Assim posso descansar (piada fraca, né?) Tudo legal. Manda lembranças pra todo mundo e diz que o fato de eu não ir cumprimentá-los pessoalmente não deve ser considerado como falta de atenção. É que ando muito atarefado...
Tchau! Lá vão as sacolas de volta.
Beijão, com gripe e tudo.
Beto

Era uma vez - XXI
Bilhetes a Celina (2)


Este está sem data mas, pelo conteúdo, percebe-se ser de final de fevereiro de 1.972. Traz o inevitável "visto" do censor. Mantive a acentuação que se usava na época (pelo menos, a que eu usava). Minha letra era bonitinha, tá sabendo?
Deixa os auto-elogios pra lá e vamos ao texto. Reparem na preocupação em dizer as coisas de maneira a driblar a censura:
Oi! manhê!
É de manhã. Ficamos batendo papo a noite tôda aqui na cela, de modo que agora é que o pessoal foi dormir. O silêncio é quase total no presídio. Quando os “corrós” estavam aqui era uma barulhada de manhã! Agora a gente até estranha o silêncio. Acabei de ler mais um editorial do “Estadão” sôbre os presos correcionais (os corrós). Como todos sabem, tanto as senhoras como os senhores, os presos correcionais não existem. Uma pessoa, por lei, não pode ficar detida sem culpa formada por tempo maior do que um curto prazo. Na Justiça Comum, não sei exatamente qual é êsse prazo. Na Justiça Militar, são 30 dias prorrogáveis por outros 30. Isso em aritmética daquela que a gente aprende no grupo, dá dois meses. Depois, sempre segundo a lei, ou decreta a prisão preventiva ou solta o cidadão. Como eu já estou detido há sete meses, chega-se à límpida e insofismável conclusão de que eu não existo há exatamente cinco meses. Mas há pessoas que não existem há muito mais tempo. Napoleão, por exemplo, é uma delas.
As coisas chegaram e eu paro por aqui.
Apesar da inexistência, sábado eu estou lá no pátio. Inexistente mas assíduo.
Um beijão!
Tchau!
Beto

terça-feira, 12 de abril de 2005

Era uma vez - XX
Bilhetes a Celina (1)


Outro dia, remexendo nas tralhas aqui de casa, encontrei um pacotinho amarrado com uma fita amarelada pelo tempo e coberto com um papel em que a letra de minha mãe – inconfundível – definia: “Bilhetes do Beto”. São meus recados à “manhê”, como eu a chamava na época. Escritos no presídio Tiradentes, anos 71, 72 e 73. Minha mãe os guardou. Quando, em 92, ela morreu, minha irmã mais velha os achou entre os guardados da matriarca. Repassou-os a mim. Agora, ao reencontrá-los, constato como eram prosaicos. Pediam mantimentos, davam conta da roupa suja que eu às vezes mandava para casa de minha mãe, coisas assim. De vez em quando, raramente, escapa algum comentário menos banal. Afinal, os bilhetes eram cuidadosamente censurados na saída do presídio.
Transcrevo os que achar que merecem algum registro. Este, por exemplo:
Oi, manhê!
25/4/72
[data anotada por minha mãe]
Por ter sido a mais recente, a visita de hoje foi a melhor de todas. A próxima será melhor ainda...
O advogado não apareceu
[era o Dr José Carlos Dias, sobre o qual falarei qualquer hora], como era de se esperar... De resto, tudo às mil maravilhas. Espero que aí fora tudo esteja como no melhor dos mundos possíveis.
Mando a lista, alguma roupa suja e vasilhas limpas (ou quase). Estou chegando aos nove meses de prisão. Talvez nasça uma maturidade maior disso tudo. Mas pra usar aonde? Esse mundo está cada vez mais idiota. Quando a gente se enriquece internamente a gente se sente meio anacrônico, como naquelas historinhas de máquina do tempo em que um fulano de 2134 volta a 1972 e acha tudo estranho, esquisito. Mas, paciência. O homem ainda vai demorar pra descobrir que tem de ser homem nas horas em que se comporta como animal e animal nas horas noturnas em que o obrigam a ser civilizado pra que o mundo não se desorganize pelo efeito corrosivo da descoberta do prazer. Pensar, quando é tempo de pensar. Sentir, quando é tempo de sentir. Salomão já sabia disso.
Um beijão (e outros para os outros), e Tchau!
Beto

domingo, 10 de abril de 2005

O poder e a maçaneta


Reparei que alguém veio a este blog ao pesquisar no Google sobre maçaneta de porta. É que a expressão consta de algum capítulo do "Topologia Trivial".
Imediatamente lembrei de um comentário de não sei quem, que li não sei onde.
O aspone perguntou ao governador:
- Por que o poder político fascina tanto?
E o político:
- Não sabes como é bom passar quatro anos sem precisar segurar maçaneta de porta.

sexta-feira, 8 de abril de 2005

O desaparecimento gradual das (minhas) crenças


Quando eu tinha uns onze anos, perguntei a meu pai, que era pastor baptista:
- Pai, como fica o índio, no interior do Brasil, que nunca ouviu falar em Jesus. Quando ele morrer, vai pro inferno?
Minha dúvida fazia sentido. Afinal, os cristãos afirmam que só há salvação em Cristo. Se o indivíduo não aceitar a Cristo como seu Salvador, tá perdido. Só se salva (leia-se: vai pro céu) se aceitar a salvação em Cristo. Os evangélicos pensam assim (Os católicos já têm umas complicações, tipo purgatório etc e tal. Mas isso eu já não levava a sério mesmo aos onze anos).
Mas, e se ele nunca ouviu falar em Jesus? Vai pro inferno?
Meu pai deu de ombros. Disse-me pra que me preocupasse comigo e deixasse o índio em paz.
Começou aí, ao menos pelo que me lembro, meu processo de descrença gradual. Quando pude (isto é, quando cessou a pressão violenta da família) caí fora da igreja e passei a pensar por conta (mais ou menos) própria.
Passei por outras crenças. O marxismo foi uma delas. Devagar, debaixo de muita porrada, fui perdendo, uma a uma, todas as crenças.
Até hoje, mantive a crença na humanidade. Acredito na capacidade do ser humano de superar-se. De criar. De inventar.
Contudo, às vezes, essa última crença sofre abalos. Agora, por exemplo. Quatro milhões de pessoas tentam entrar em Roma para celebrar a morte do papa. Há confusão. Afinal, a cidade tem menos de três milhões de habitantes. Receber, de repente, a visita de quatro milhões é complicado. Falta água, falta tudo. Acho até que faltam ladrões para roubarem as carteiras dos visitantes. Normalmente isso abunda em Roma.
Fazer o quê. Essas pessoas querem ver o cadáver do papa. Já deve estar fedendo, já que dizem não ter sido embalsamado, o corpo. É um monte de ossos e de carne putrefata. Mas essa multidão quer ver isso.
Agora, diz pra mim: se eu perder minha crença na humanidade, vou acreditar em quê?!?!

domingo, 3 de abril de 2005

A arte de ser pai


Mesmo antes de ter o primeiro filho já eu havia adotado o lema:
Ser pai é a arte de se tornar desnecessário.
Nem me lembro onde li isso, muito menos sei quem inventou essa definição.
Sei que procurei seguir por aí. Não é que deu certo?
Ontem, minha filha mais velha e minha neta vieram despedir-se de nós. Vão viver em Westport, Connecticut, USA, onde já está meu genro, à espera das duas.
Já na sexta à noite, minha filha ofereceu uma festa a seus amigos em uma casa noturna da Vila Olímpia. Quase duzentas pessoas foram despedir-se dela. Em particular, lá estavam as três amigas que a acompanham desde os tempos de escola. A amizade das quatro já atravessou várias fases. Não há o que as separe. Nem a distância conseguirá isso.
Ontem, enquanto minha filha nos explicava a respeito de duas oportunidades de emprego que a aguardam em New York, eu prestava mais atenção em sua desenvoltura do que propriamente naquilo que falava.
Nada mais gratificante do que constatar que os filhos são beeem melhores do que a gente.
E verificar que – quando eles nos procuram – é por afeto. Não precisam de nós pra mais nada.
Ainda bem.

sábado, 2 de abril de 2005

Do Golpe à barbárie
(o Brasil que eu conheci)


31 de março de 1.964. Eu acabara de completar 19 anos. Início da noite. O rádio começa a dar notícias importantes. Os governadores de São Paulo e de Minas Gerais, Adhemar de Barros e Magalhães Pinto, fazem declarações à imprensa contra o governo federal e conclamam à insurreição.
Militares saem de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro sob o comando do General Mourão. Sem dar um único mísero tiro, os militares tomam o poder e instituem uma ditadura que duraria 20 anos.
31 de março de 2.005. Acabo de completar sessenta anos. Início da noite. Alguns policiais militares vão à baixada fluminense, Rio de Janeiro, e distribuem tiros ao acaso. Matam umas trinta pessoas. Por motivos ignorados, certamente fúteis.
Não sei se a coincidência de datas é ironia do destino.
Sei que nesses mais de quarenta anos o Brasil deteriorou-se a tal ponto que não vejo mais como sairá desse buraco.
Não há risco de barbárie. Ela já chegou e instalou-se.
E não adianta atribuir a culpa às “autoridades”. Quem cavou o buraco foi o povo brasileiro.

Certeza


Se o Vaticano fosse no Brasil, o Papa morreria exatamente a tempo de sua morte ser noticiada no final do Jornal Nacional da Rede Globo.

sexta-feira, 1 de abril de 2005

Dúvida


Se o céu é tão bacana como dizem, por que as pessoas pedem tanto a Deus que não deixe o Papa ir pra lá?