quinta-feira, 16 de setembro de 2004

Era uma vez - XIII
O Corró



Nos tempos finais de Presídio Tiradentes, as condições carcerárias melhoraram muito. Tínhamos mais banhos de sol por semana, cela pra artesanato etc. Mas o que mais propiciou um ambiente melhor foi a saída do corró.
Esse era o nome dado, na linguagem da cadeia, aos presos correcionais. Trocando em miúdos: aqueles indivíduos que estavam respondendo a inquéritos policiais, antes ainda da fase judicial. (Aliás, nunca soube porque o grande volante da seleção brasileira de 70 e do Santos F. C., Clodoaldo, tinha o apelido de corró. Sabe-se lá o que ele aprontou fora de campo. No campo, estraçalhou). Em função dessa situação, eles tinham uma rotina mais ou menos assim: pela manhã, eram levados ao DEIC (departamento policial) para serem “interrogados”. Lá pelo final da tarde voltavam para o Presídio, onde ocupavam o andar térreo do Pavilhão 2, disputando espaço com as enormes ratazanas que o infestavam.
Nesse período, entre 16 e 18 horas, mais ou menos, era possível ouvir diálogos bastante esclarecedores sobre os – digamos assim – procedimentos policiais. Presos que se conheciam, mas que estavam em celas diferentes, conversavam aos berros, cada um pendurado na grade da janela de sua cela.
- Ô fulano, quantos processos tu assinou hoje?
- Uns dez, meu.
- Eu assinei só cinco. Mas os home disseram que amanhã vou ter de assinar uma porrada.
Os presos eram levados ao DEIC, rotineiramente torturados, obrigados a assumir a culpa por crimes que eles não sabiam nem aonde tinham ocorrido etc etc. O mais incrível é que eles achavam tudo isso absolutamente natural. Talvez, pensando melhor, não seja tão incrível assim. Afinal, para eles, do corró, era natural mesmo. Tão natural quanto uma árvore, um passarinho.
Pior que o dia passado no DEIC, era a noite na cadeia. Cada cela tinha um “leão”, ou seja, um dono. “Dono”, neste contexto, tem um significado forte. E bota forte nisso. O leão era servido pelos demais presos e se servia deles, inclusive sexualmente. Toda vez que um novo preso era posto em uma cela, o leão o “convidava” a submeter-se. Caso o novato não aceitasse a submissão, partiam pro pau. Quem ganhasse, era o leão daí pra frente. Até uma próxima luta. Mortes ocorriam com freqüência nessa roda viva. Mais freqüentes, cotidianos mesmo, eram os gritos de dor e desespero dos que lutavam. Ouvíamos tudo isso com um sentimento de absoluta impotência. Nem seria preciso dizer isso. Mas já disse. Alguma redundância é boa, pros mais distraídos. Principalmente para os que saem por aí apregoando “Tortura nunca mais”. Acho que ainda não entendi bem essa expressão. A tortura é absolutamente cotidiana e rotineira nos nossos estabelecimentos prisionais e policiais. Até hoje. Podes crer. Mas como não atinge mais a classe média...
No corró, a moeda de troca era o Kent. Kent era um cigarro sem filtro. Tudo era reduzido a maços de Kent. Quando um novo preso chegava, claro que toda sua roupa era apropriada pelo leão. E começava a negociação. O leão gritava pela janela: quem quer uma calça jeans? Três Kent! Havia outras mercadorias. Maçã, por exemplo, era maconha. Negociada na Bolsa do Corró na maior tranqüilidade.
Mas, como o ser humano parece que se habitua a tudo, até no corró havia momentos de enlevo. O presídio feminino ficava do outro lado de uma muralha interna. Era possível comunicar-se com as detentas desde que se gritasse. E o pessoal do corró não deixava por menos.
- Fala, mãezinha! Manda a calcinha pra gente cheirar! (nunca soube se elas mandavam, mas o pedido era recorrente. E mãezinha era algo como amorzinho, benzinho. Bem edipiano).
E, por falar no lado feminino, havia um leão de cela que era conhecido como Martinho da Vila. Mulato enorme, tinha, assim como os demais leões, a regalia de ficar fora de sua cela durante o dia (isso quando não ia ao DEIC, claro), funcionando como atendente no corredor do primeiro andar, o dos presos políticos. Fazia pequenos favores, levando coisas de uma cela a outra, chamando o carcereiro quando necessário. A alcunha derivava do facto de Martinho cantar de modo a lembrar o verdadeiro Martinho da Vila. Tirando proveito disso, desenvolvera fama de compositor.
Essa fama lhe trouxe problema. E ele correu a buscar auxílio em nossa cela:
- Ô da doze!
- Fala, Martinho.
- Seguinte. Quero mandar este cartão de Natal pra uma mãezinha lá do pavilhão feminino. Acontece que ela pensa que sou compositor. Quer uma música pra ela. Aí pensei. Os meninos da doze vão me quebrar esse galho. Faz aí pra mim uma letra bacana. A melodia eu coloco. Mas não sei escrever direito.
- Deixa com a gente.
Reuni o pessoal mais jovem da cela. Nessa época a cela 12 tinha seis ocupantes. Dois deles eram o Vô e um companheiro seu cujo nome não me lembro, ambos do Partidão (PCB). Os outros eram o Jonas, o Toninho, o Melo e eu (todos do POC). Os “velhos” do Partidão nem pensar. Quanto aos demais, concordância imediata: era mandatório produzir uma letra pra música do Martinho. Foi um concurso de lugares comuns amorosos (aliás, como certos poemas encontrados em certos blogs, hoje em dia). O cartão de Natal nos inspirava. Martinho tinha enchido o dito cujo de talco perfumado. Um horror. Era daqueles cartões que, quando a gente abre, “brota” uma borboleta em três dimensões. Lindo, lindo.
Feito o poema, transcrito no cartão, esperamos Martinho, orgulhosos de nossa produção.
Ele veio, agradeceu muito e se foi.
Dia seguinte, mal o sol nascera, lá pelas seis da matina, acordamos com a música que subia do corró. Era Martinho a cantar “nossa” composição. Confesso que me emocionei. Sei lá porquê. Talvez porque nunca compusera um samba antes (nem depois).
Espero que a mãezinha tenha gostado.


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