sábado, 25 de setembro de 2004
O BOLO
Era um bolo. É. Um bolo. Daqueles simples, pra se comer acompanhado de uma chávena de chá ou uma xícara de café. Na verdade, era um pouco mais caprichado. Tinha maçã e canela. Talita chegara com ele, estagiária nova na empresa. Colocou-o na copa do andar em que trabalhava. O pessoal veio tomar o café das quatro da tarde e lá estava o bolo. Todo mundo elogiou.
- Que delícia, o bolo da Talita.
Ela, tímida, explicou que fora sua mãe a fazer o bolo.
- Sua mãe faz um bolo excelente, era a opinião unânime.
Foram fatiando o bolo e comendo.
- Ainda há mais bolo. Chama o pessoal. Está uma delícia.
Mais pessoas vieram, comeram, elogiaram.
E o bolo não acabava. Começaram por achar engraçado.
- Parece que esse bolo não acaba!
E vários repetiram. Comeram mais um pedaço.
O bolo não terminava.
- Pessoal! Há ainda bolo. Não é hoje o aniversário do António, lá do sexto andar? Chama lá a turma do sexto pra comemorar.
Veio o António. Veio a turma do sexto andar.
Aos poucos ficou claro que o bolo – digamos assim – se prolongava. Não acabava.
E alguém teve a idéia (sempre tem alguém com essa idéia):
- Escuta gente. Tem a favela aqui perto. Esse bolo está sobrando. Vamos levar uns pedaços pra distribuir lá.
Uns poucos toparam. Pegaram alguns nacos do bolo e lá se foram.
No caminho passaram por alguns mendigos que pediam esmolas no cruzamento de duas avenidas.
- Querem bolo?
Aceitaram.
- Pô! Nunca comi uma pizza de aliche tão gostosa! disse um pedinte.
Os que iam à favela estranharam o comentário, mas não deram maior importância.
Ao chegar aos muquifos, as crianças vieram correndo. Sabiam que gente bem vestida chega sempre trazendo alguma coisa interessante. Foram aceitando os pedaços de bolo e se refestelando.
- Que delícia de brigadeiro! dizia uma.
- Puta macarrão gostoso! era outro comentário.
Ficaram sem entender. O bolo parecia saber a coisas diversas. Maluquice.
Deixaram a garotada a deliciar-se com os pedaços de bolo e voltaram ao escritório.
Começaram a trocar idéias sobre todo o sucedido.
- E se a gente mandasse pedaços do bolo pras outras filiais e pra matriz da empresa?
Essa era a filial de Curitiba, no Paraná. Cidade estranha, na qual a torcida em campo de futebol aplaude, quando o jogador faz um gol. Onde se fala português correto. Tudo certinho.
Mandaram. Um pedaço pra cada estabelecimento da empresa. Via malote. Embrulhados, os pedaços, em papel alumínio.
É claro que todo mundo levou um pedaço pra casa. Óbvio.
Devagar a coisa ficou clara. Cada pedaço proliferava indefinidamente. Além disso, tinha o gosto daquilo que a pessoa quisesse comer. Você pensava em um bife acebolado? Pronto. Lá estava ele, contido no pedaço de bolo. Morango com chantili? É pra já.
Resumindo, a coisa alastrou-se. Não foi assim, de repente. De início, as pessoas tinham certo pudor em falar do bolo. Podia o interlocutor achar que estavam loucas. Mas foi irresistível. Correu mundo.
Quando chegou à África, por exemplo, acabou com a fome em várias regiões. Darfur foi uma delas. Em todos os continentes houve mudanças significativas. Mesmo nos Estados Unidos. Mesmo na Europa. É preciso dizer que o bolo não resolvia todos os problemas. É verdade que matava até a sede. Mas não substituía um bom vinho, por exemplo. Nem uma bagaceira, um whisky, um cognac. Em função disso, Portugal incrementou sua indústria do vinho. Mais se produzisse, mais se vendia.
A repercussão de tudo isso, percebe-se, foi imensa. Houve até uma edição especial do Saca-Mulas Oriental (especial porque deu-se numa terça-feira e não – como sempre – às quintas) a discutir a questão do bolo face à fenomenologia husserliana, face ao Tractatus. A playmate da edição foi, é evidente, Talita. Penso que deveria ter sido sua mãe, mas isso fica a questionar-se junto aos redatores do Saca.
Aliás, a esse tempo, já muitas dúvidas tinham sido suscitadas pelo Bolo. Havia quem duvidasse até da existência da mãe da Talita. Até mesmo da própria Talita, vejam só. Havia a teoria de que o Bolo teria sido gerado por Brahma, o Deus. Ou, diziam outros, o Bolo teria sido encontrado em um cesto às margens do rio Nilo. Dizia-se um de tudo.
Nem tudo eram flores, contudo.
A indústria de alimentação, principalmente nos países desenvolvidos, sofreu baque irrecuperável. Digamos com todas as letras: desapareceu. Com a honrosa exceção das bebidas, como já foi dito.
O Iraque não foi abandonado pelos Estados Unidos. Continuou ocupado. Mas já não houve mais tantos atentados, tantas mortes. Afinal, a comida sobejava. Fartavam-se as milícias. Bush bisneto quase não se reelege.
De uns tempos a esta parte, começaram a surgir alguns sinais de inquietação. Parece que satélites norte-americanos vislumbraram enormes pedaços do Bolo sobre a floresta amazônica. Os cientistas se desdobraram em esforços investigativos. O facto é: se o Bolo é partido, regenera-se. Se é deixado inerte, apodrece. Decompõe-se. E aí o problema. Como evitar a contaminação causada pelos pedaços apodrecidos?
Mesmo entre os animais a coisa agrava-se. Os predadores – eles também – preferem o Bolo. Afinal, tem o gosto que lhes apetece. Espécies multiplicam-se incontrolavelmente. O desequilíbrio ecológico (com perdão da má palavra) instala-se.
Está prevista, semana próxima, reunião do Conselho de Segurança da ONU para o debate da questão.
Quanto a mim, estou-me nas tintas para tudo isso (finalmente consegui usar essa expressão! - em brasileirês é 'estou cagando e andando pra isso tudo').
Estou é com fome.
Vou comer um pedaço de Bolo. Acompanhado de um Pera Manca, safra 2.045.
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