quinta-feira, 29 de abril de 2004

Quer ganhar um dinheirinho?


O livro Negociando Racionalmente, de Max Bazerman e Margaret Neale (editora Atlas), fala de um jogo que pode te render uns trocados.

No meio de uma reunião com algo do tipo dez ou vinte pessoas você saca do bolso uma nota de vinte reais e sugere um leilão. Quem oferecer mais pela nota, paga e leva. Quem ficar em segundo lugar paga a oferta feita e não leva nada. As ofertas têm de ser de real em real, começando em R$1,00.

Começa o jogo. Sempre tem o gaiato que dá o primeiro lance. Em seguida, alguém oferece R$2,00. O cara que deu o lance de R$1,00 não quer perder seu rico realzinho e dá o lance seguinte: R$3,00. Etc etc.

Diz a experiência que o povo desiste lá pelos duzentinhos.

Quanto a você, perde a nota de vinte e leva uns quatrocentos. Tá bom, num tá?

terça-feira, 27 de abril de 2004

A Biblioteca


O Louco da Montanha, domingo agora, falou sobre duas músicas do Raul Seixas que têm versos comuns (vide Uma Chupadinha). Isso me lembrou um texto do Borges (La Biblioteca de Babel in Ficciones) em que ele descreve uma biblioteca, ou melhor, A Biblioteca, composta de livros formados por todas as combinações possíveis das vinte e poucas letras do alfabeto, mais espaço, ponto e vírgula. Cheia de livros absolutamente desprovidos de sentido, A Biblioteca tem, por outro lado, todos os textos de filósofos (em várias línguas, por sinal), todas as peças de Shakespeare, o diabo a quatro. Talvez os gênios sejam os que conseguem melhor movimentar-se nos infindáveis (será?) corredores dA Biblioteca e achar os textos mais preciosos, às vezes com algumas repetições.

Observação (fevereiro de 2.006):
o Louco da Montanha era um blog do Léo, no Mblog. Já não mais existe, como todos os blogs do Mblog. Por isso não há link para ele. Nem neste post nem no post abaixo, sobre as Matanças.

domingo, 25 de abril de 2004

Matanças


Este Spasso eu coloquei no meu blog do UOL em fevereiro deste ano, ao começar o blog, pouco depois de meu retorno de Portugal ao Brasil. Quando iniciei este blog do Mblog não consegui inserir as fotos. Agora, graças à dica do Louco da Montanha aí estão as fotos.
O fato de ocupar este Spasso com o assunto das Matanças justo hoje, 25 de abril, é coincidência. Pensava que feliz, mas a julgar pela "bronca" do José Carlos (vide comentários) já não sei.

Explicação (fevereiro de 2.006): Comecei com um blog no UOL. Justamente para publicar fotos de minha viagem a Portugal, no final de 2.003, início de 2.004. Foi então que postei, pela primeira vez, as fotos das matanças em minha aldeia. Pouco depois mudei o blog para o Mblog. Mas, por não saber como publicar as fotos, só o fiz em 25 de abril de 2.004. Foi quando conheci José Carlos Barros, de quem viria a tornar-me amigo, e que surgiu com um comentário furioso, questionando minhas intenções com isso de publicar fotos de matanças no aniversário da Revolução dos Cravos. Apesar de José Carlos ter depois explicado que interpretara apressadamente a situação, outros comentários surgiram, uns deplorando a tradição das matanças, outros a defendê-la. Enfim, já agora no Blogger, cá estão elas novamente. As tradicionais matanças. Pense o que bem entender.

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As matanças são festa tradicional das aldeias de Trás-os-Montes. Em dezembro as famílias marcam um dia pra sua matança. Convidam vários vizinhos. No dia marcado, começa-se pelo pequeno almoço. Depois vão buscar os porcos. Engancham-se os focinhos dos mesmos e puxam-nos para fora.



Cada homem segura uma pata, outro segura o rabo e dois seguram a corda presa ao focinho do dito cujo. Um outro vem com o facão e crau!!!, espeta-lhe o coração. O porco arremete, pula, tenta libertar-se mas acaba por sucumbir, morre. Uma mulher apressa-se a recolher em uma bacia o sangue que jorra do coração.



Tudo politicamente incorreto, secular.

A seguir, trazem um botijão de gás e começa a queima do pelo com maçarico, pra limpeza da pele. Depois de queimado, o pelo é raspado a faca. A água jorra da mangueira para retirar resíduos. Ao final, o porco está limpinho, pele amarela, clara.



Inicia-se a dissecação: abre-se o peito do moço,



coloca-se o animal sobre uma espécie de escada de madeira, amarra-se nela o cadáver e ergue-se a escada para encostá-la a alguma parede.



Retiram-se as vísceras, lava-se o interior do animal e pronto. Agora basta guardá-lo em local seguro. Só no dia seguinte voltarão pra destrinchá-lo totalmente, salgar as carnes e preparar as linguiças pro fumeiro. Aqui no nordeste brasileiro as carnes são secas ao sol. Lá no nordeste trasmontano são secas ao lume. Resultado: comida pro ano inteiro, até a próxima matança.



Falta dizer que a festa da matança continua em um almoço oferecido pelos da casa aos que participaram. É indispensável o prato de couve com pão picado. Há coelho, cordeiro, frango, leitão e mais e mais!



Há - ao final do dia - o jantar, que ninguém é de ferro.

Deixa explicar que as fotos acima são de duas matanças diferentes: uma foi na casa de Carlos e Fernanda, a outra na casa de Alípio e Zelinda (minha prima). Selecionei as fotos que melhor ilustravam o - digamos assim - "processo"... tudo isso em Passos, claro, claro...

sábado, 24 de abril de 2004

De Armandos


Ontem de manhã ouvi entrevista do senhor Armando Nogueira na Rádio Bandeirantes. Na conversa com Salomão Ésper, José Paulo de Andrade etc etc – pelo visto preparando a contratação do dito cujo – falaram a respeito de Pelé e Maradona. O senhor Armando Nogueira dissertou a respeito das raízes familiares de Edson Arantes, em contraposição ao caráter “menino de rua” de Diego. Disse que Diego era “indiozinho” e coisa e tal.

Tudo bem. Sou de Santos. Sei algumas coisinhas sobre o lado “família” do senhor Edson. Mas deixa isso pra lá.

O duro é ter de ouvir o senhor Armando Nogueira pontificando sobre caráter etc e tal. Dá uma espiadinha em Notícias do Planalto (Mario Sergio Conti, Companhia das Letras) pra ter uma idéia da atuação desse diretor do Jornal Nacional durante a ditadura.

AN veio do Acre, começou em esportes na imprensa do Rio porque nada sabia de jornalismo (pg 31). Contando com o fator sorte (como diria Galvão Bueno) chegou ao jornalismo político. De 1.966 a 1.988 (presta atenção nas datas, no que elas representam e vai sentindo o drama) foi diretor da Central Globo de Jornalismo, levado por Walter Clark (tudo isso está ainda na pg. 31). Pra dar uma idéia de como apitava o AN na direção do jornalismo da Globo, o Conti diz (pg. 33): “ ’Estou conversando com você porque não consegui achar o Walter’, dizia Roberto Marinho a Armando Nogueira toda vez que telefonava para discutir alguma notícia que deveria, ou não, ser levada ao ar.”.

Depois tem o episódio da Proconsult (pgs. 35 e 36), ridículo.

E o lance das Diretas, Já!. Mais ridículo. A manifestação reuniu um milhão de pessoas no Anhangabaú. “Boni imaginou uma maneira de mencioná-la, ao mesmo tempo que cumpria a ordem de não noticiá-la. Numa reunião em sua sala com Armando Nogueira, determinou que uma repórter falasse da Praça da Sé, em menos de vinte segundos, que ali estava sendo comemorado com um show o aniversário de São Paulo.” (pg. 38). E o douto AN engolindo tudo. Estava lá pra isso.

Enjoei.

Se quiser leia o resto do livro do Conti.

Agora, senhor Armando. Lava a boca (e a alma) pra falar do Dieguito.


É. É melhor ouvir certas coisas do que ser surdo.

quinta-feira, 22 de abril de 2004

E agora?


Dia 19 eu achei um texto sobre Lisboa no blog da Yukio e - sem saber que língua era aquela - resolvi "traduzir". Acontece que ela pegou minha, digamos assim, tradução e tascou no blog dela não sem antes escrever algumas coisas em sueco (agora eu sei que é sueco). Agora preciso de alguém - urgentemente - que saiba sueco E português para traduzir mesmo o texto dela pro português e traduzir a minha "tradução" pro sueco. Aí eu pego a tradução sueca do meu texto e "traduzo" pro português. E aí...

Meu deus. Onde é que eu fui amarrar meu burro.

Em tempo: Många, palavra sueca, quer dizer "muito". Já sei alguma coisa de sueco. Mas periga dar rolo esse negócio de ficar traduzindo sueco pro português pelo jeitão. Olha só o título do post dela sobre a minha "tradução":

Hallå där? Hola?

Como você traduziria isso pro português (só no jeitão)?

Maradona



Tirei essa foto com o Maradona há uns oito,nove anos, no aeroporto de Ezeiza, Buenos Aires (cortei a minha parte, o que interessa é el pibe). Sei que nós brasileiros temos bronca de argentino etc e tal. Desculpem, eu não tenho. Buenos Aires tem mais livrarias que o Brasil inteiro. Pode? Prefiro Maradona - que jogou um pouco menos bola que o Pelé - ao Edson. Que me desculpem os crápulas, mas caráter é fundamental. Maradona é ser humano de alta categoria. Além dos pés, que usou com maestria, tem também cabeça (os ingleses que o digam) e coração. Alma enorme. Magnânimo Mará. Fico na torcida pra que teu coração agüente mais um pouco, que não te vás tão temprano. Esse mundo de Bushs, Iraques, Osamas e Sharons precisa de Maradonas. Fica um pouco mais, pibe, não nos deixe. Tua doença, tão ridicularizada por tanta gente, é menor que a doença do mundo. Conversa mais um pouco, toma um chá (ou se não der, cheira um pouco) mas fica.

Vou parar por aqui porque estou emocionado. A emoção não é boa de literatura. Nesse momento não quero literatura, quero vida. Viva Maradona!

terça-feira, 20 de abril de 2004

Pequeno Ensaio Biográfico sobre Gustav Mahler


Na verdade, o pai de Gustav era – modéstia à parte – português. Era o Manuel Malta, que por engano do homem do cartório (parente daquele que trocou Milton por Millôr em Minas) virou Manuel Maler.

Um certo dia, um amigo do Manuel que vivia na Alemanha, o Emmanuel von Kant falou pra ele: Ò gajo! Por que não vens trabalhar aqui. Estão a precisar de funcionários na Mercedes Benz! O Manuel achou a proposta um tanto bizarra mas o Emmanuel foi definitivo: Pois saibas que há Mahler que vem pra Benz!

Ele foi. Primeira providência foi dar uma guaribada no nome, pra disfarçar o lusitanismo (se bem que dizem que alemão é apenas um português que sabe matemática...). Trocou o Manuel por Emmanuel e aumentou o sobrenome pra torná-lo mais pomposo. Ficou : Emmanuel von Mahler Sem Alça (deu algum problema porque na Alemanha eles não têm “ç”, mas funcionou assim mesmo).

Tanto trabalhou na Mercedes que acabou produzindo vários filhos (pelo cheiro da brilhantina deste humilde Ensaio, você já desconfiou que a mulher dele se chamava Mercedes. Acertou.).

Lá pelo quarto ou quinto, ainda na maternidade, a comadre perguntou: Ò Emmanuel, gostas desse novo filho? Ao que ele respondeu: Se fosse mulher Gustava, mas como é homem... o resto você já sabe. Nascia Gustavo Mahler Sem Alça, que viria a ser mais conhecido por Gustav Mahler. A comadre insistiu: mas, Ó Emmanuel, de todos qual o de que mais gostas? E ele, sincero:

Dos Mahler? O menor!

segunda-feira, 19 de abril de 2004

Tradução


O texto a seguir eu achei neste blog aqui.

Não consegui saber que língua é essa mas como adoro desafios, traduzi. Tem algumas partes difíceis. Fazer o quê. Rapadura é doce mas...

LISBOA

Lissabon är precis lika bra som det ska vara. Staden är lika vacker som förut, maten nästan lika oätlig, tanterna lika gulliga (och förkrymta), "carrie:sarna" (de pyttesmå spårvagnarna) lika söta, caffe com leche (kinesa) lika fantastiskt gott, spriten lika billig, utsikten från hotellrummet totalt andlöst magnefik och Alfama visade sig vara en helt ok stadsdel att bo i. Dock många trånga gränder och smala smala stentrappor, men helt ok. Lite långt att gå från barerna i Bairro Alto på natten.
Med gudieboken långt nerpackad i väskan och utan karta strosar vi runt och njuter. Vi kan den här staden och vi trivs oroväckande bra.


TRADUÇÃO:

LISBOA

Lisboa é precisamente como o Brasil mas falta vara. As Estudantes são como vacas em fúria, matam aulas como ostras [aqui não sei se é matam aulas pra comer ostras ou matam aulas como comem ostras, ou seja, uma atrás da outra, N. do T.], badernam como gorilas (ou formigas), “coçam o saco” (ou seja, não fazem porra nenhuma), tomam soja, café com leite (em caneca) como gotas fantásticas, fervidas no bule, se mandam dos hotéis totalmente perdidas e vão à magnífica Alfama visando achar vara de um jeito ou de outro. Então se a mangueira do cara é grande ou pequena pequena tanto faz, sendo homem tá OK. Lambem [me recuso a traduzir o resto dessa frase, N. do T.]. No Bairro Alto não há nada.
Mas boca livre dá em pancada e já que outros tantos descartam esse troço vim rasgando as juntas. Vim candente e estou de olho, vim provocando três no braço.

Observação: O blog da Yukio, da Suécia, era - tal qual o meu - do Mblog. Descobri, agora (fevereiro de 2.006), que ela tem novo blog. É esse que indico acima

domingo, 18 de abril de 2004

Lido num banheiro da USP


Cristo morreu. Marx morreu. Freud morreu. Einstein morreu.

Pra falar a verdade, eu também não ando me sentindo muito bem.

sábado, 17 de abril de 2004

Lulla Walessa


Ia falar que Lulla parece que vai aos poucos transformando-se em Lech da Silva (aquele que governou e sumiu). Desisti. Fiz uma pesquisa no Google e vi que todo mundo já percebeu isso. Só espero que nosso Grande Condutor já esteja a providenciar "reservas" pra manter o padrão a que se acostumou rapidinho dona Marisa.

Agora, atenção segundo e terceiro escalões: corram porque o tempo é curto. Lembrem-se: quem guarda tem. Certo, Renato Cef?

Brasil. Capital Buenos Aires.


Não sei porque toda a imprensa brasileira fica com urticária patriótica quando um Bush (ou Reagan, ou qualquer americano, presidente ou não) diz que a capital do Brasil é Buenos Aires, ou confunde Brasil com Bolívia e coisas que tais. Por acaso você, brasileiro que me lê nesse momento, sabe qual é a capital do Chad? Você entenderia como grave erro cultural dizer que é Cartum? E o Togo, tem fronteira com Gana? O Gabão tem portos marítimos? E a República Central Africana. Tem? A Tunísia faz fronteira com a Argélia, com Marrocos ou com o Egito? Você acha que Lula devia saber que Windhoek era limpinha? Onde fica isso? Falaram outro dia. Namíbia ou Botswana?

Claro. Você vai se defender dizendo que a África... Bem, a África é uma áfrica.

Vai morar na Rocinha então.

sexta-feira, 16 de abril de 2004

Check in pra Angola


Faz alguns anos. Estava no aeroporto de Lisboa. Esperava o horário de meu vôo pro Brasil. Andava a esmo pelos saguões. Cheguei ao salão de check in. Tudo vazio. Ou melhor, quase. Um grupo grande de pessoas tentava fazer check in prum vôo pra Luanda. Era uma zorra. Os poucos funcionários atrás do balcão tentavam em vão explicar aos passageiros que deviam formar fila a partir da faixa amarela e aguardar chamada. Uns subiam em cima dos outros, todos brandindo seus bilhetes por sobre as cabeças. Todo mundo gritava.

Comecei a estimar quantos anos (décadas, gerações, séculos) seriam necessários praquela turma sacar a vantagem de fazer fila.

Refaço essa pergunta todo dia ao viver o cotidiano paulistano, ao ver os noticiários sobre a realidade brasileira. Quando será que aprenderemos a fazer fila pra check in pra Luanda?

quinta-feira, 15 de abril de 2004

Vilém Flusser


Entramos na sala distraidamente, conversando. Era sempre assim. A aula de Filosofia não interessava a ninguém. A gente ia lá pra assinar a lista de presença, embromar um pouco e cair fora. Diz o Milton Vargas que foi ele e mais Nilo Amaral que propuseram à Congregação da Poli (Escola Politécnica da USP) a criação de disciplinas de "humanidades". No fundo, no fundo a questão era a seguinte: até a década de 50 a Poli só recebia alunos da elite. Esse pessoal tinha - em casa - uma formação cultural ampla. Ia pra faculdade pra aprender engenharia. O resto vinha "de berço". Nos anos 60 a classe média começou a predominar na composição das novas turmas. Era um pessoal (tô nessa) que nunca tinha ido ao exterior, não frequentava ópera, teatro, não tinha lido os clássicos (isso até que eu tinha feito, em parte, claro, claro, mas isso é outro papo) etc etc. Aí entrava na Poli, estudava engenharia, ia pro mercado de trabalho ganhar bem, gerenciar empresas e ... tudo analfabeto. De pai e mãe. A Congregação da Poli intuiu o problema e criou as disciplinas de "humanidades". Era o verniz cultural da engenheirada. Primeiro ano, Introdução à Engenharia. Vinham uns caras experientes (tipo Lucas Nogueira Garcez, engenheiro respeitado que foi até governador de São Paulo - caiu fora quando viu a sujeira que era a política) contar "causos" da realidade da profissão. Segundo ano Português, não me lembro com quem. Terceiro ano, Sociologia, com Heraldo Barbuy. Gente fina. Quarto ano Filosofia com Milton Vargas. Que me perdoe o próprio - se ainda vive - mas as aulas eram absolutamente burocráticas, tediosas. Ele ficava falando abóboras lá na frente e o povo assinando lista de presença e caindo fora. E aí voltamos ao início.

Entramos na sala distraidamente, conversando. Aos poucos fomos estranhando o silêncio. A aula era sempre uma balbúrdia. Um entra e sai. Hoje não. Silêncio. Paramos, olhamos pra frente da sala de aula (um pequeno anfiteatro). Lá está um careca de cavanhaque, lendo um texto enorme (a julgar pela grossura do cartapácio que tem nas mãos). Levanta o olhar, interrompe a leitura e espera que nos sentemos. A gente não entende nada. Teoria do Conhecimento. É sobre o que ele lê.

Desse dia em diante não perdemos mais um minuto de uma aula de Vilém Flusser. O grande mérito de Milton Vargas nessa história toda foi ter convidado o Flusser pra substituí-lo. Primeiro era provisório. Umas quatro aulas durante uma viagem do Vargas. Virou permanente. Uma CPMF do bem.

Flusser era carismático, envolvente. Mas não vou ficar esticando sobre ele. Se quiser, leia aqui.

Só queria dizer que, além de ter me levado à Filosofia (e ao Departamento de Filosofia da USP, com seus Giannottis et caterva) Flusser fez coisas bem mais significativas (pudera): escreveu A História do Diabo, livro que o Exército me roubou ao prender-me, anos mais tarde (aliás, além desse livro mais uns três mil... inclusive Bíblias). Escreveu durante algum tempo no Suplemento Literário do Estadão. Um artigo pra mim inesquecível é um que se chamava - se a memória não me trai - "Da Desconversa". Nele, em resumo, Flusser argumenta o seguinte: há três perguntas realmente fundamentais e - puta coincidência! - nenhuma das três pode ser respondida. A saber: de onde vim, o quê estou fazendo aqui e pra onde vou. Já que o jogo é esse, que fazer? Resposta: desconversar. Se o que realmente importa é inatingível, resta o suicídio ou a ironia. Porra, vamos de ironia, né não?

Daí que você discutir o último jogo do Coríntia com envolvimento é ridículo. Mas com ironia... por que não. Fazer o quê. É o que resta. Se não estou totalmente errado, é o que todo mundo tá fazendo hoje em dia. Desconversando. Ou, como dizem meus patrícios portugueses, estão todos a desconversar.

quarta-feira, 14 de abril de 2004

Rua Maria Antonia - 1.968



Edifício Canadá. Quarto andar. Tenório toca piano. São quatro da manhã. Alguém manda ver num pistão com surdina. Na bateria, afinada, outro alguém esfrega uma vassourinha, no ritmo. Eu curto. A campainha toca. Encrenca. Deve ser o síndico pra reclamar. Não. Não é. É o filho de um general, ele mora no sexto andar, ouviu o som, pede pra entrar. Entra.

Como esquecer tudo isso? Depois veio a briga entre Mackensie e USP, feridos, Hospital das Clínicas. Mais adiante foi a explosão de uma bomba no colo de um "subversivo" na esquina da Consolação com Maria Antonia, dentro de um carro. O corpo pela metade e os policiais a apontar armas pro toco humano, a querer saber quem, como, quando. Jazz. Sangue. Memória. Tenório morreu em Buenos Aires. Outros morreram aqui mesmo, em São Paulo.

Eu não morri. Ainda.

E o filho do general. Fala aí, meu. Onde tu tá?

terça-feira, 13 de abril de 2004

Lua


Quando eu era garoto, me meti numa discussão de rua sobre quem andava. Se era a Lua, se eram as nuvens. Tinha uma menina que pontificava: parece que é a Lua mas não é. São as nuvens. E eu dizia: peraí, tá certo que as nuvens dão uma sensação de movimento rápido pra Lua. Mas a Lua se move. Que nada, meu. É impressão. A Lua tá parada. Comecei, então, a perceber que levar discussão a sério não leva a lugar nenhum. Devia mesmo é ter faturado a menina. Sei lá. Não me lembro nem como era a menina. De resto, quem não andava mesmo era eu. Paradão. Paradão.

Fica esperto


Ô meu! A cronologia - aqui - não tá cum nada. Olha tudo senão você perde coisas. Que coisas? Sei lá, meu. Tudo. Nada.

domingo, 11 de abril de 2004

Um pontinho no nariz



- Vamos brindar.
- Isso. Ao acaso que fez a gente se conhecer.

E que belo acaso. Ele não cansava de admirar o rosto dela, os
cabelos, o sorriso. Desde que a encontrara vivia em estado de
graça. Não havia dúvida. Estava absoluta e totalmente
enamorado. Já eram seis meses de relação. A vida dele ganhara
novo sentido. Sentia-se preenchido, completo.

- Mais um chopp?

O garçom quebrou o fluxo de lembranças e o trouxe de volta ao
presente. Lá estava ela diante dele. Os olhos grandes e
negros, o nariz perfeito. Olhou demoradamente para o nariz
dela, tentando analisar os fatores que o faziam impecável. E
de repente reparou em um detalhe que até então havia escapado
à sua observação. Um pontinho negro, quase invisível, a meio
caminho entre as sobrancelhas e a ponta do nariz, um pouco
para a direita do rosto. Nunca havia visto aquela pintinha,
ele que tanto observava aquele rosto, aquele nariz.

- Você não tinha essa pinta no nariz. Quando que apareceu?
- Errado. É de nascença. Você nunca reparou nela?
- Não. Seria capaz de jurar que ela apareceu de ontem pra hoje.
- É. Mas está aí há vinte e cinco anos.
- Vinte e quatro.
- Ah. Eu arredondo. Que diferença faz?

Nenhuma. Pra ele, ela não tinha idade. A perfeição é atemporal. Foram embora porque os dois tinham de trabalhar na segunda. Iriam se rever na quarta ou na quinta. Difícil esperar até lá. Difícil ficar sem ela, assim, dois ou três dias.

Na quinta se encontraram. Estranho. Será? Mas era. A pinta tinha aumentado. Já ocupava boa parte do nariz. Era marron, lisa.

- Não acha que devia consultar um médico?
- Acho que não. Tenho essa pinta desde sempre.
- Mas está aumentando.
- Tudo bem. Se você acha que é o caso...
- Não é questão de se eu acho. O problema não é o que eu acho.
- Tá bom. Não precisa se aborrecer. Vou marcar consulta. Pronto.

Semana seguinte se reencontraram. Incrível. A mancha já recobria quase todo o rosto.

- Você foi ao médico?
- Fui. Mas ele disse que é normal.
- Normal o quê?
- Normal. Essa pinta.
- Mas não é mais pinta. A mancha já cobre quase todo seu rosto.
- Não exagera. Você faz tempestade em copo d’água. O médico me disse pra tomar uma colher de chá de pouco caso de hora em hora. Acho que você devia fazer o mesmo.

Falar o quê. Ela parecia não se importar com a tal... coisa. Aquilo crescia a olhos vistos. E ela nada. Mas que incomodava incomodava.

Semana seguinte teve que viajar a trabalho. Não pôde vê-la. Foram se reencontrar só na véspera do dia dos namorados. Ela estava linda como sempre. Mas... É, é difícil reconhecer, mas aquela mancha estava tornando as coisas difíceis. Já cobria todo o rosto, parte do pescoço e um pouco do braço direito.

Conversaram um pouco. Sem entusiasmo da parte dele. Ela percebeu, claro. Perguntou se alguma coisa acontecera, ele disse que não e ficou por isso mesmo.

Marcaram um jantar para o dia seguinte. Seria o primeiro dia dos namorados dos dois.

Dia seguinte ela recebeu um telegrama lá pelas três da tarde. Era dele e dizia:

"Prezada Suzana: Por motivos contrários à minha vontade não poderei vê-la hoje. Grande abraço."

(baseado em Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso)

domingo, 4 de abril de 2004

Reflexões administrativas


Olhou pro chefe que acabara de fechar um contrato de 35 milhões e pensou:

- A diferença entre o imbecil e o gênio é o resultado.

sábado, 3 de abril de 2004

Surpresa


Me amarrei no nome Maria Senhora. O pior (ou o melhor) é que tem gente à beça com esse nome.

O dia que eu tiver uma filha vai ganhar esse nome. Com certeza.

sexta-feira, 2 de abril de 2004

Praga


- Bom dia! XPTO S.A.

- Bom dia. Quero falar com o Valter.

- Quem gostaria?

- Pode ser a Angie Dickinson? Não não. Não é do seu tempo.

- Desculpe, senhor, mas poderia estar dizendo seu nome?

- Não só poderia como posso. Sou o Antero.

- De onde?

- Da minha casa mesmo.

- Um momento. Vou estar verificando se o Dr. Valter está.

...

- Alô. Obrigado por estar esperando. O Dr. Valter está em uma reunião. Posso estar anotando seu recado para estar transmitindo a ele mais tarde?

- Tudo bem. Mas posso matar uma curiosidade? Esse gerundês que a senhora fala não tem mais que uns cinco anos. Por mais jovem que a senhora seja, já passou dos vinte. Minha dúvida é: antes do gerundês, que diabo de língua a nobre donzela falava?

A Revolução de 1º de abril


Em 1.964 quase todo mundo era a favor do golpe. Da imprensa nem se fala. Tirando os pequenos jornais dos grupos de esquerda ou - para dizer melhor - considerando só a chamada grande imprensa, a adesão era unânime.
Hoje tudo mudou. A Rede Globo et caterva produzem e apresentam especiais mostrando os horrores da ditadura... Mas nesse afã de agradar aos atuais donos do poder, a turma se esquece de certos detalhes.
Na época, os "a favor" chamavam o evento de Revolução de 31 de março ou Redentora, os "contra" o intitulavam Golpe de 1º de abril. Ou seja, não houve um evento chamado Golpe de 31 de março. O que se execra na mídia atual só passou a existir agora. Não me interessa discutir se essa rixa por datas era ridícula. O que importa é que ela existiu e era levada a sério pelos agentes históricos.
Diante disso proponho que seja comemorada (ou esculhambada) - hoje - a Revolução de 1º de abril.