quinta-feira, 15 de abril de 2004
Vilém Flusser
Entramos na sala distraidamente, conversando. Era sempre assim. A aula de Filosofia não interessava a ninguém. A gente ia lá pra assinar a lista de presença, embromar um pouco e cair fora. Diz o Milton Vargas que foi ele e mais Nilo Amaral que propuseram à Congregação da Poli (Escola Politécnica da USP) a criação de disciplinas de "humanidades". No fundo, no fundo a questão era a seguinte: até a década de 50 a Poli só recebia alunos da elite. Esse pessoal tinha - em casa - uma formação cultural ampla. Ia pra faculdade pra aprender engenharia. O resto vinha "de berço". Nos anos 60 a classe média começou a predominar na composição das novas turmas. Era um pessoal (tô nessa) que nunca tinha ido ao exterior, não frequentava ópera, teatro, não tinha lido os clássicos (isso até que eu tinha feito, em parte, claro, claro, mas isso é outro papo) etc etc. Aí entrava na Poli, estudava engenharia, ia pro mercado de trabalho ganhar bem, gerenciar empresas e ... tudo analfabeto. De pai e mãe. A Congregação da Poli intuiu o problema e criou as disciplinas de "humanidades". Era o verniz cultural da engenheirada. Primeiro ano, Introdução à Engenharia. Vinham uns caras experientes (tipo Lucas Nogueira Garcez, engenheiro respeitado que foi até governador de São Paulo - caiu fora quando viu a sujeira que era a política) contar "causos" da realidade da profissão. Segundo ano Português, não me lembro com quem. Terceiro ano, Sociologia, com Heraldo Barbuy. Gente fina. Quarto ano Filosofia com Milton Vargas. Que me perdoe o próprio - se ainda vive - mas as aulas eram absolutamente burocráticas, tediosas. Ele ficava falando abóboras lá na frente e o povo assinando lista de presença e caindo fora. E aí voltamos ao início.
Entramos na sala distraidamente, conversando. Aos poucos fomos estranhando o silêncio. A aula era sempre uma balbúrdia. Um entra e sai. Hoje não. Silêncio. Paramos, olhamos pra frente da sala de aula (um pequeno anfiteatro). Lá está um careca de cavanhaque, lendo um texto enorme (a julgar pela grossura do cartapácio que tem nas mãos). Levanta o olhar, interrompe a leitura e espera que nos sentemos. A gente não entende nada. Teoria do Conhecimento. É sobre o que ele lê.
Desse dia em diante não perdemos mais um minuto de uma aula de Vilém Flusser. O grande mérito de Milton Vargas nessa história toda foi ter convidado o Flusser pra substituí-lo. Primeiro era provisório. Umas quatro aulas durante uma viagem do Vargas. Virou permanente. Uma CPMF do bem.
Flusser era carismático, envolvente. Mas não vou ficar esticando sobre ele. Se quiser, leia aqui.
Só queria dizer que, além de ter me levado à Filosofia (e ao Departamento de Filosofia da USP, com seus Giannottis et caterva) Flusser fez coisas bem mais significativas (pudera): escreveu A História do Diabo, livro que o Exército me roubou ao prender-me, anos mais tarde (aliás, além desse livro mais uns três mil... inclusive Bíblias). Escreveu durante algum tempo no Suplemento Literário do Estadão. Um artigo pra mim inesquecível é um que se chamava - se a memória não me trai - "Da Desconversa". Nele, em resumo, Flusser argumenta o seguinte: há três perguntas realmente fundamentais e - puta coincidência! - nenhuma das três pode ser respondida. A saber: de onde vim, o quê estou fazendo aqui e pra onde vou. Já que o jogo é esse, que fazer? Resposta: desconversar. Se o que realmente importa é inatingível, resta o suicídio ou a ironia. Porra, vamos de ironia, né não?
Daí que você discutir o último jogo do Coríntia com envolvimento é ridículo. Mas com ironia... por que não. Fazer o quê. É o que resta. Se não estou totalmente errado, é o que todo mundo tá fazendo hoje em dia. Desconversando. Ou, como dizem meus patrícios portugueses, estão todos a desconversar.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário