domingo, 30 de setembro de 2012

Onde foi parar essa gente?

O Evangelho de Mateus (27:52-53)  - e só ele, entre os quatro canónicos -  narra a morte de Jesus como acontecimento extraordinário ("... a terra tremeu, as pedras se fenderam, os sepulcros se abriram...").

Não à toa, Pepe Rodriguez (Mentiras Fundamentales de la Iglesia Católica, pág. 218-219) estranha a incredulidade dos apóstolos face a evento tão notável:
A inexplicável descrença dos apóstolos diante da notícia da ressurreição de Jesus se torna ainda muito mais alarmante quando lemos o testemunho de Mateus a respeito do que se seguiu à morte do messias judeu: "Jesus, dando de novo um forte grito, expirou. A cortina do templo rasgou-se de alto a baixo em duas partes, a terra tremeu e se partiram as rochas; abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos que dormiam ressuscitaram e, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição d'Ele, vieram à cidade santa e apareceram a muitos. O centurião e os que com ele guardavam a Jesus, vendo o terremoto e tudo quanto havia sucedido, temeram sobremaneira e diziam uns aos outros: Verdadeiramente, este era o filho de Deus..." (Mateus 27:50-54) [Rodriguez se vale da versão espanhola de Nácar-Colunga da Bíblia Sagrada (católica). A tradução acima é minha, assim como de todo o texto aqui citado de Pepe Rodriguez. Quanto a mim, utilizo a tradução para o Português do Novo Testamento, em Inglês, de Russell Norman Champlin - edição que apresenta, versículo a versículo, o original grego, sua tradução e comentários interpretativos. Champlin foi traduzido para o Português por João Marques Bentes (edição de A Voz Bíblica Brasileira, 6 volumes)].
Diante deste testemunho inspirado de Mateus só cabem duas conclusões: ou o relato é uma absoluta mentira - com o que também se converte em uma invenção o resto da história da ressurreição -, ou a humanidade dessa época apresentava o nível de cretinice mais elevado que se possa jamais conceber. Uma convulsão como a descrita não apenas teria sido a "notícia do século" em todo o vasto Império romano, mas, obviamente, teria de ter levado todo o mundo, judeus e romanos incluídos, com o sumo sacerdote e o imperador à frente, a peregrinar ante a cruz do suplício para aceitar o executado como o único e verdadeiro "Filho de Deus", tal como supostamente avaliaram, com bom tino, o centurião e seus soldados; mas, em lugar disso, ninguém se deu por achado em uma sociedade sedenta de deuses e prodígios, nem espalhou-se o pânico entre a população - máxime em uma época na qual boa parte dos judeus esperava o iminente fim dos tempos, coisa na qual também havia crido e sobre a qual predicara o próprio Jesus -, nem sequer logrou que os apóstolos suspeitassem que ali estava a ponto de ocorrer algo maravilhoso e por isso a nova da ressurreição os pilhou fora de jogo. É o cúmulo  do absurdo.

Para mim, o mais interessante nessa lenda toda é a ressurreição de "muitos santos que dormiam". Pepe Rodriguez também se admira com isso:
Além disso, como não iriam chamar atenção e despertar alarme os muitos santos que, segundo Mateus, saíram de suas tumbas e passearam por Jerusalém entre seus moradores? Santos esses dos quais, por certo, não se diz quem eram (nem a razão de sua santidade), nem quem os reconheceu como tais, nem a quem apareceram (...).

Pergunto eu: quando um gajo ressuscita ele passa a viver cá na Terra eternamente? Ou voltará a morrer? Se valer esta última hipótese, então a morte não é como as mães, que são únicas.
A edição do Novo Testamento que utilizo comenta, por um lado:
A ressurreição desses santos (...) provavelmente foi permanente, embora não contemos com informações abundantes a respeito.
(observo, de passagem, que esse "embora não contemos com informações abundantes" é um dos melhores eufemismos de que já tomei conhecimento...)
O autor dos comentários não se digna a informar a razão do "provavelmente"... De resto, quanto às 6 outras ressurreições citadas na Bíblia o comentário é o de que  " (...)embora provavelmente tivessem sido todas restaurações à vida física, sem a participação na vida celestial, pois as pessoas assim ressuscitadas continuaram sendo pessoas mortais.". De onde o comentarista tirou também este "provavelmente" eu não sei..
O facto é que simpatizo com a ideia de que a ressurreição daqueles santos que voltaram à vida aquando da morte de Jesus tenha dado a eles a eternidade aqui na Terra.

Por onde andarão esses seres nos dias de hoje?

Tenho alguns palpites: cá em Portugal, um deles deve ser o Mário Soares.

No Brasil, sem dúvida, está o José Sarney.

Sugeres mais alguém?

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Desacordos linguísticos

Um dicionário como o Priberam, predominantemente dedicado ao uso da língua portuguesa em Portugal, atribui ao verbo DAR, como verbo transitivo,  25 sentidos. Mais 11 significados na qualidade de verbo intransitivo. Nenhum deles tem relação directa com sexo.
Já o Houaiss, referente quase por inteiro ao uso que se faz do Português no Brasil, confere a DAR 20 itens de significados. O último deles:

20. Uso: informal.
aceitar fazer sexo com;

No dicionário esse significado aparece em último lugar. Na vida real, talvez em primeiro.

Por tudo o que acima vai dito, surpreendeu-me a campanha largamente divulgada nos hospitais e centros de saúde de Portugal e caracterizada por cartazes como este:

(clique na imagem para ampliá-la)

No Brasil, uma campanha assim seria impensável.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Sobre paradoxos

O dicionário Priberam define paradoxo como opinião contrária à comum. Apesar de ser um dicionário muito bom e útil, neste caso penso que o Priberam pisou na bola. Afinal, se digo Juliana Paes é feia, estou a emitir opinião contrária à comum. Mas não estou a formular um paradoxo. Talvez esteja apenas a falar uma besteira.

A definição do Aulete me parece melhor: Ideia, conceito, proposição, afirmação aparentemente contraditória a outra ou ao senso comum.

Baseado nessa definição é que entendo como ruim a expressão - muito usada - parece paradoxo. Ou a similar parece paradoxal.

Ora, se paradoxo é algo que parece contraditório, parecer paradoxo vem a ser expressão que remete a algo que parece que parece contraditório.

Economize: a respeito de algo que parece contraditório mas não é, diga tão somente que é paradoxal.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

sábado, 22 de setembro de 2012

Centro de Dia

Está a ser construído, em Passos de Lomba, um Centro de Dia para atender aos habitantes das aldeias próximas (as da freguesia de Vilar Seco e as da freguesia de Quirás). As pessoas terão no Centro um ponto de encontro para passar o dia, refeições que poderão ser tomadas no próprio Centro ou em suas casas etc etc. À medida que as pessoas forem perdendo sua mobilidade, poderão ter no Centro um valioso auxílio.
As obras vão já em estado adiantado:









(clique nas imagens para ampliá-las)


Penso que, para alguém que tenha suas origens na Zona da Lomba, poucas acções poderão ser mais meritórias do que a de ajudar a construir este Centro de Dia. Procurem seus parentes que lá vivem e vejam como podem contribuir.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Pra não dizer...

...que não postei flores.



(clique nas imagens para ampliá-las)


Fotos tiradas na aldeia Rio de Onor. Essa aldeia, distante 22 km da cidade de Bragança, fica metade em Portugal, metade em Espanha.

Pedras Rubras

Aí vão duas fotos do Aeroporto Francisco Sá Carneiro, aeroporto do Porto, mas situado na Maia (isso é importante para quem vai guiar-se por GPS: se não colocar Maia no lugar de "cidade", não achará o aeroporto...). O aeroporto, para os íntimos, é o Pedras Rubras.




(clique nas imagens, para ampliá-las)

Actualização: Alguém (anónimo) informa, nos comentários, que fica "metade na Maia e outra metade em Matosinhos". Tem razão (apenas parece que se deva acrescentar Vila do Conde, segundo a Wikipédia)  [24-09-2012].

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Ainda o mel

A terra prometida, que mana leite e mel (Êxodo 3:8, por exemplo), é a terra que é boa para crianças e para velhos.
Essa é a interpretação aceita pela Antroposofia. Segundo Rudolf Steiner, o guru dessa corrente de pensamento, cada ser humano é a encarnação de um espírito.
No início, quando do nascimento, predominam as características etéreas do espírito recém encarnado. A criança é toda arredondada, a lembrar gotas d'água. Com o processo de crescimento, o indivíduo vai tornando-se "terra". Na velhice os ossos predominam.
Por isso, o leite é o alimento adequado a auxiliar o processo de encarnação. O leite é fortemente ligado à terra. A vaca, por exemplo, é um animal vinculado ao solo.
Já na velhice o ser humano precisa compensar sua quase completa solidificação por meio de alimentos ligados ao etéreo, ao ar. O mel é, por excelência, esse tipo de alimento. Preparado por abelhas a partir de flores.

Quanto a mim, gosto muito de iogurte grego com mel. Mistura todas essas características e é uma delícia!

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Gafanhotos e meles

Essa língua portuguesa é mesmo do balacobaco. Veja, por exemplo, esse plural de mel. Isso lá é palavra que se apresente?!
Quanto mais aqui, na fronteira.
Dia desses eu almoçava em casa da prima Zelinda. A TV estava ligada, como é hábito em 110% das casas portuguesas. Como o assunto do noticiário fosse futebol, perguntei ao primo Arnaldo se o campeonato português já havia começado.
- Sim. Já empessou.
Surpreso, pedi ao primo António a confirmação:
- Eu ouvi bem? Ele disse empessou?
Sim. Era o que ele dissera. Coisas de fronteira.

* * *

Aliás, isso de morar em fronteira tem outros problemas. Não faz muitos dias, senti a terra tremer, cá em Bragança. Pensei em terremoto. Mas um artigo da vibrante publicação Carta Maior (no caso, coisa do Brasil) me explicou: era a movimentação das massas revolucionárias operárias e camponesas da Andaluzia em sua luta rumo ao socialismo. Mas calma. Não é algo pra já. É coisa para um dos próximos milénios.

* * *

Por falar em milénios, ando a pesquisar o início do cristianismo. Vai daí, em meio à confusão de doutrinas cristãs dos primeiros séculos de nossa era, encontrei um grupo de ebionitas (uma das correntes de seguidores de Jesus na época) que, por razões que não vêm ao caso, tornou-se vegetariano.
Sabemos até hoje que a tradição dos Evangelhos informa que João Baptista se alimentava de gafanhotos e de mel. Ora, não é lá muito típico, nem se encontra actualmente nos talhos, mas o facto é que gafanhoto é carne.
Para encaixar João Baptista em suas crenças e hábitos, esses ebionitas aproveitaram a semelhança das palavras (em grego) e trocaram gafanhotos por panquecas.
Pronto. Para esses vegetarianos, João passou a comer mel e panquecas. Não deixa de ser uma melhoria no cardápio... Só não entendo como eram preparadas as tais panquecas. Afinal, o homem vivia no deserto.

* * *

Já que falei em mel, aproveito para mostrar aqui minha indignação, nada revolucionária mas muito justa: por que diabos não se usa com maior frequência o mel no lugar do açúcar?
Dizer que o mel é mais gostoso não vale, eu sei. Afinal, é questão de gosto...
Mas o mel tem, por exemplo, uma grande vantagem: não faz mal para diabéticos. Quer dizer, não posso fazer uma afirmação assim, em geral. Mas posso garantir, porque já medi repetidas vezes, que para este diabético que vos escreve o mel não altera a glicemia. Já o açúcar...

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Portugal: campeão no Brasil?

Quando do Euro 2012, eu achava que a selecção portuguesa de futebol era fraca. Minha opinião desmoronou diante das excelentes apresentações do onze luso. Nas meias-finais, contra a campeã do mundo, a Espanha, Portugal só perdeu na disputa por penaltis. A Espanha foi campeã.
Agora, nas eliminatórias para a Copa de 2014 (no Brasil), a selecção continua a melhorar. Hoje, ganhou, em Braga, do Arzeibaijão. 3 X 0. O adversário veio para nao deixar Portugal fazer golos. Em geral, equipas que jogam na defensiva deixam apenas um jogador lá á frente, para aproveitar um eventual contra ataque. O Arzeibajão jogou com os onze atrás. Nao é fácil ganhar de uma equipa que joga assim.
Depois de martelar durante todo o primeiro tempo, Portugal conseguiu seu primeiro golo com a entrada de Varela, na segunda metade do jogo. Em sua primeira jogada, abriu o marcador. Valeu a ousadia de Paulo Bento, o treinador, que retirou um defensor e colocou Varela sem tirar Postiga. Portugal passou a dispor de dois atacantes.
Os demais golos surgiram com naturalidade.
Se continuar nesse ritmo, Portugal é sério candidato ao título no Brasil.



segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Sobre a existência de Jesus

Penso ser importante que as pessoas, nos dias de hoje, saibam que não é assim tão óbvio que Jesus tenha de facto existido.
Bart Ehrman, autor que já citei aqui antes, é dos que advogam a existência histórica de Jesus. Também Paul Verhoeven, em seu excelente Jesus de Nazaré, afirma acreditar que Jesus tenha mesmo existido.
Mas as evidências a respeito da existência de Jesus não são assim tão grandes.
Vou procurar resumir o já resumido texto de Bart Ehrman sobre o assunto (em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, pag. 159 - 168):
Talvez a maioria das pessoas pense: afinal, os quatro Evangelhos canónicos contam a vida de Jesus. Isso não basta?
A resposta é não. E por quê? Porque os Evangelhos estão cheios de discrepâncias e foram escritos décadas após o ministério e morte de Jesus, por autores que não testemunharam pessoalmente nenhum dos acontecimentos da vida dele (sobre a autoria dos Evangelhos e dos demais livros do Novo Testamento, falaremos em outro post).
Sobre isso, é conveniente explicitar quais as exigências que os estudiosos gostariam que as fontes de informação sobre eventos e personagens históricos cumprissem.
As fontes devem ser contemporâneas dos acontecimentos que descrevem;
As fontes são melhores quando independentes umas das outras:
Mas elas devem ser coerentes entre si.

Quais as fontes a respeito de Jesus?
Temos várias fontes nos Evangelhos do Novo Testamento. Mas elas foram produzidas entre 35 e 65 anos depois da morte de Jesus por pessoas que não o conheceram, não viram nada do que ele fez e não ouviram nada do que ele ensinou. Pessoas que falavam um idioma diferente do dele (falavam o grego, ele, o aramaico) e viviam em outros países. Não se trata de relatos desinteressados. São narrativas produzidas por cristãos que de facto acreditavam em Jesus. Não são fontes independentes: Mateus e Lucas valeram-se de Marcos. São amplamente inconsistentes, com discrepâncias muitas, inclusive com compreensões divergentes em larga escala sobre quem Jesus era.
É possível utilizar tais fontes, mas é preciso muito cuidado e método.

Há fontes gregas e romanas. Temos muitas fontes gregas e romanas da época: estudiosos de religião, historiadores, filósofos, poetas, cientistas naturais; temos milhares de cartas particulares, inscrições em locais públicos.
Pois bem: Jesus viveu no século I, morreu por volta de 30 d.C.. Ele não é mencionado em nenhuma fonte grega ou romana do século I (até 100 d.C.).
Há uma primeira menção a ele em Plínio (112 d.C.), o jovem, governador de uma província romana. Em carta escrita ao seu imperador (Trajano), ele conta que havia um grupo de pessoas chamadas de cristãs que se reunia ilegalmente; quer saber como lidar com a situação. Ele diz ao imperador que essas pessoas "veneram Cristo como um Deus". É tudo o que diz sobre Jesus.
O historiador romano Tácito, em sua história de Roma (115 d.C.), explica que os cristãos são assim chamados por causa de "Christus (...) que foi executado pelas mãos do procurador Pôncio Pilatos no reinado de Tibério".
Essas duas referências são tudo o que podemos encontrar, nas fontes gregas e romanas, de 30 a 130 d.C..

Há, ainda, o historiador judeu Flávio Josefo, que lá por volta de 90 d.C. escreveu uma história em vinte volumes do povo judeu desde os tempos de Adão e Eva até seus dias. Nessa obra, ele se refere duas vezes a Jesus.
Em uma, ele identifica um homem chamado Tiago como "o irmão de Jesus, que é chamado de Messias".
Em outra, a coisa é mais complicada por terem posteriormente acrescentado trechos ao texto original de Josefo, mas - de qualquer forma - é importante saber que o historiador judeu de maior destaque no século I sabia pelo menos alguma coisa sobre Jesus.

São essas as parcas fontes sobre a existência do Jesus histórico. É pouco. Mas, com método, é possível extrair delas algo provavelmente verdadeiro. Mas isso fica para outro post.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Parabéns! filho

Hoje meu filho completa 35 anos. E, se é verdade que não acredito nas vidas futuras e eternas que as religiões oferecem, sei que - depois que eu morrer - viverei na memória de meus filhos e de meus netos.
Toda vez que meu filho pensar em mim, mesmo que seja para lembrar que eu o induzia a comer muita carne gordurosa e o influenciei para que fosse adepto do São Paulo, eu estarei vivo.
Meus filhos são minha eternidade.

Formas de ler a Bíblia

Há a leitura dita devocional e há a leitura histórico-crítica.
Segundo Bart Ehrman (Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, Ediouro, 2010, p. 16), na leitura devocional a preocupação é "com aquilo que a Bíblia tem a dizer - especialmente o que tem a dizer a mim, pessoalmente, ou à minha sociedade. O que ela me diz sobre Deus? Cristo? A igreja? Minha relação com o mundo? Sobre em que devo acreditar? Sobre como agir? Responsabilidades sociais? Como a Bíblia pode me ajudar a estar mais perto de Deus? Como ela me ajuda a viver?".
Já na abordagem histórico-crítica  as preocupações são outras: o que os textos bíblicos significavam em seu contexto histórico original? Quais os verdadeiros autores dos livros da Bíblia? etc etc.
Nessa última forma de ler a Bíblia acabamos por saber, por exemplo, que Moisés não é o autor dos cinco livros do Pentateuco (ele viveu no século 13 a.C.. Já a redacção de Génesis, Êxodo etc etc se situa entre os séculos 10 a 7 a.C. São seiscentos anos de intervalo. Mais tempo do que a existência do Brasil, por exemplo...). Os quatro evangélicos canónicos, aqueles que constam do Novo Testamento, foram escritos ao longo de uns 70 anos, por indivíduos que não conheceram Jesus pessoalmente (o catecismo ensina diferente? Acontece que, nos últimos duzentos anos, a arqueologia, o estudo do hebraico e do grego arcaicos etc etc, evoluíram muito e permitiram conclusões mais precisas sobre a autoria dos livros bíblicos).
Aprendemos, também, que não dispomos de originais de nenhum dos livros bíblicos. Apenas dispomos de cópias de cópias de cópias... feitas à mão ao longo de séculos. Os textos de tais cópias não coincidem entre si. É preciso desenvolver critérios de análise que permitam afirmar, com alguma segurança, qual a versão mais fiel ao original desconhecido.
De resto, os autores dos livros bíblicos, quando os escreveram, não sabiam que suas obras seriam reunidas todas em um único livro, a Bíblia.
Decorre daí o interesse de outro tipo de leitura: a leitura horizontal da Bíblia.
Claro que a Bíblia pode - e deve - ser lida da maneira como lemos qualquer outro livro. Começa-se do começo e vai-se até o fim. É a leitura que chamaremos de vertical.
Nos meus tempos de garoto, enquanto meus colegas do Colégio Canadá, em Santos, aproveitavam os domingos ensolarados para irem à praia, eu frequentava a Escola Dominical da Igreja Baptista. Lá aprendia que, se lesse 3 capítulos da Bíblia por dia e cinco aos domingos, completaria a leitura integral da Bíblia exactamente em um ano (já não me lembro bem se 5 capítulos eram só aos domingos ou também aos sábados...). Aprendia que os livros da Bíblia (a protestante) são 66. São 39 do Antigo Testamento e 27 do Novo. E é fácil guardar isso: 3*9=27... Não foi à toa que demorei muitos anos para me dar conta de que o domingo é o dia do sol (Sunday).
Mas é muito instrutivo experimentar a chamada leitura horizontal.
Na leitura vertical, você lê o Novo Testamento começando por Mateus, depois envereda por Marcos, vai a Lucas e termina os evangelhos com a leitura de João. Você se emociona com os quatro. Muito bem.
Experimente, por outro lado, fazer o seguinte: pegue, por exemplo, o nascimento de Jesus. Mateus e Lucas o descrevem. Marcos e João não. Anote em duas colunas paralelas de folhas de papel, todos os detalhes narrados por Mateus (coluna da esquerda, digamos) e todos os detalhes contados por Lucas (coluna da direita).
Agora comece a compará-los. Verá como há pequenas discordâncias mas também diferenças importantes e inconciliáveis.
Se quiser, faça o mesmo com os relatos da morte de Cristo, da ressurreição etc etc. Bart Ehrman, na obra citada acima, dá exemplos de tais comparações para os casos seguintes: morte de Jesus, nascimento de Jesus, a genealogia de Jesus, o que diz a voz no baptismo de Jesus?, para onde foi Jesus um dia após ser baptizado?, a filha de Jairo já estava morta?, quem é a favor de Jesus e quem é contra ele?, quanto tempo durou o ministério de Jesus?, o julgamento perante Pilatos, a morte de Judas e as narrativas da ressurreição.

A partir dessa leitura horizontal, o estudo histórico-crítico da Bíblia o levará a entender bem melhor os textos.

Mas não deixe de ir à praia, de vez em quando.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

3. O presépio

No contexto agrário (*)  típico da época do nascimento de Jesus, surgiu a imagem popularizada pelos presépios: o boi e o asno a adorar e a acalentar o menino Jesus, deitado na manjedoura.
Mas essa imagem, tão cara à ICAR,  não aparece descrita em nenhum dos evangelhos canónicos... A história do Natal, do modo como a conhecemos até hoje, consta do evangelho apócrifo pseudo-Mateus (capítulo 14).

A tradição dos animais adoradores e/ou auxiliadores de personagens extraordinários, nós a encontramos também em todas as culturas anteriores ao cristianismo.
(Pepe Rodríguez, op. cit., p. 145)
Desde Rómulo e Remo, alimentados por uma loba, até as lendas espalhadas por toda a Ásia, que reproduzem tradições antiquíssimas como as de Tchu-Mong (Coreia), Tong-Ming (Manchúria) ou Heu-tsi (China).
Deste último, por exemplo, conta-se que "sua doce mãe o trouxe ao mundo em um pequeno estábulo à margem do caminho; os bois e cordeiros o acalentaram com sua respiração. Foram até ele os habitantes dos bosques, apesar do rigor do frio, e as aves voaram até o pequenino para cobri-lo com suas asas".
(idem, ibidem)

É muito provável que esse tipo de lendas tenha se desenvolvido a partir do costume ancestral, esse sim real e estendido por todo o planeta, de expor os recém nascidos que se supunham ilegítimos aos animais selvagens ou domésticos ou às águas abertas (rios ou mares). 
(...)
Nos casos em que o recém nascido sobrevivia à "exposição" aos animais selvagens ou à água e ocorria a circunstância de que o pai não havia podido manter de nenhuma maneira relações sexuais com a mãe (por estar - o pai - a navegar ou em guerra, por exemplo), considerava-se que a criatura havia sido engendrada por algum deus, declaração que devolvia a paz à família e enchia de orgulho ao pai cornudo pela graça de Deus. Em muitos povos do sudeste asiático perdurou até há apenas dois séculos o costume de matar toda mulher grávida de um homem desconhecido... salvo se a mãe anunciasse que o pai havia sido um deus ou um espírito, caso no qual era felicitada por todos seus vizinhos."

(idem, p. 146)

(*) agrário ou pagão. O termo latino paganus significa de aldeia, do campo. Pagus é aldeia. (cf. Félix Gaffiot, Dictionnaire Illustré Latin - Français, Librairie Hachette, 1.934)

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

2. A estrela guia

Na maioria dos relatos a respeito do nascimento de deuses ou de heróis menciona-se a aparição de estrelas ou outros sinais celestes que anunciam a qualidade sobrenatural do recém nascido. Assim, por exemplo, na lenda chinesa de Buda se fala de uma milagrosa luz celeste que anunciou sua concepção; no Bhâgavata-Purâna conta-se como um meteoro luminoso anunciou o nascimento de Krishna; o historiador Justino refere como a grandeza futura do rei Mitríades já havia sido anunciada pela aparição de um cometa no momento de seu nascimento e no de sua ascensão ao trono; no dia em que Julio Cesar nasceu apareceu a estrela Ira no firmamento e, segundo Suetonio, não voltou a aparecer até a véspera da batalha de Farsalia; (...)
(Pepe Rodríguez, Mentiras fundamentales de la Iglesia Católica, p. 139)

Mateus é o único livro do Novo Testamento que fala dos magos que chegaram a Jesus guiados pela estrela (aliás, "uns magos", não três) (Mateus 2:1-12).
Lucas, ao narrar os eventos prodigiosos do nascimento de Jesus, não fala nos tais magos. Muito menos em qualquer estrela (Lucas 2:8-14). Curioso: ao orientar uns pastores de ovelhas para que encontrassem o local em que estava o recém nascido, ao invés de recomendar que procurassem a brilhante estrela estacionada sobre o local do nascimento, sugere que procurem, em plena noite, uma criança envolta em panos e reclinada em uma manjedoura...
Mateus e Lucas, evangelhos escritos em terras diferentes (Egipto e Roma, respectivamente), adornam seus relatos sobre Jesus inspirando-se em lendas já existentes mas que gozavam de diferente prestígio em um lugar ou no outro;  por isso, Mateus tingiu de orientalismo popularesco o nascimento de Jesus enquanto que Lucas torceu a mão para adaptar-se a tradições míticas que fossem mais críveis na capital do império.
(Pepe Rodríguez, op. cit. p. 143)
Na linha da narração de Lucas estão, por exemplo, os nascimentos de Buda (a terra tremeu, ondas de chuvas perfumadas e de flores de loto caíram de um céu sem nuvens etc etc), de Krishna (todos os devas - divindades resplandecentes - deixaram seus carros no céu e, fazendo-se invisíveis, foram à casa de Mathura na qual estava por nascer o menino divino e, unindo suas mãos, puseram-se a recitar os Vedas e a cantar louvores em honra de Krishna etc etc), de Confúcio (apareceram dois dragões no ar por cima de sua casa e cinco veneráveis anciãos, que representavam os cinco planetas então conhecidos, entraram na habitação para honrar o recém nascido etc etc)

domingo, 2 de setembro de 2012

1. A virgindade de Maria

Vamos tentar resumir:
Os evangelhos de Mateus e de Lucas relatam a milagrosa anunciação do nascimento de Jesus. Cada um a seu modo.
Os evangelhos de Marcos e de João (além de Paulo), por incrível que pareça, não tocam no assunto.
Quanto ao quesito originalidade:
O Antigo Testamento traz:
Nascimento de Sansão (Juízes 13):
E havia um homem de Zorá, da tribo de Dã, cujo nome era Manoá; e sua mulher, sendo estéril, não tinha filhos.
E o anjo do SENHOR apareceu a esta mulher, e disse-lhe: Eis que agora és estéril, e nunca tens concebido; porém conceberás, e terás um filho.
(Juízes 13:2-3)
Com algumas diferenças, as circunstâncias básicas deste relato se repetem no nascimento de Samuel (1º Samuel 1).
Antes disso, Deus já havia intervindo no nascimento de Isaac (Génesis 21: 1-4).

Os relatos sobre anunciações a mães de grandes personagens aparecem em todas as culturas antigas do mundo.
China: anunciação à mãe do imperador Chin-Nung ou à de Siuen-Wu-ti;
Japão: anunciação à mãe de Sotoktaïs;
Irlanda: anunciação à mãe de Stanta (encarnação do deus Lug);
México: anunciação à mãe do deus Quetzalcoatl;
Índia: anunciação à mãe do deus Vishnu (encarnado no filho de Nabhi);
Grécia: anunciação à mãe de Apolónio de Tiana (encarnação do deus Proteu);
Pérsia: anunciação à mãe de Zoroastro ou Zaratustra, reformador religioso do masdeísmo;
Egipto: anunciação às mães dos faraós egípcios (por exemplo, no templo de Luxor ainda se pode ver o mensageiro dos deuses Thot anunciando à rainha Maud sua futura maternidade por graça do deus supremo Amón).
(esta lista poderia ser interminável)

"Todos os grandes personagens, fossem reis ou sábios - como, por exemplo, os gregos Pitágoras (c. 570 - 490 a.C.) ou Platão (c. 427 - 347 a.C.) -, ou aqueles que se tornaram o centro de alguma religião e que acabaram sendo adorados como "filhos de Deus", Buda, Krishna, Confucio ou Lao-Tsé, foram mitificados para a posteridade como filhos de uma virgem. Jesus, surgido muito depois deles, ainda que sujeito a um papel equivalente ao de seus antecessores, não ia ser menos. Dessa forma, budismo, confucionismo, taoísmo e cristianismo ficaram impregnados com o selo indelével de haver sido resultado da obra de um "filho do Céu", encarnado através do acesso directo e sobrenatural de Deus ao ventre de uma virgem especialmente apropriada e escolhida."
(Pepe Rodríguez, Mentiras Fundamentales de la Iglesia Católica, Ediciones B, S.A., 2004, Barcelona)
(a sofrível tradução é minha)

sábado, 1 de setembro de 2012

Quando o Papa ainda não era infalível

A infalibilidade do Papa em matéria de fé e de costumes só foi promulgada em 1.870. Antes disso, alguns Papas  soltaram o verbo:

Desde tempos imemoriais é sabido quão proveitosa nos tem sido esta fábula de Jesus Cristo.
(carta do papa Leão X (1.513 - 1.521), dirigida ao cardeal Bembo).

Reprovam-me por, de vez em quando, me entreter com Tasso, Dante e Ariosto. Mas não sabem que sua leitura é a deliciosa bebida que me ajuda a digerir a rude substância dos estúpidos doutores da Igreja? Não sabem que esses poetas me proporcionam cores brilhantes, com a ajuda das quais suporto os absurdos da religião?
(carta do papa Clemente XII (1.740 - 1.758), dirigida a Montfauçon).