quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A leitura da Bíblia - 4


(Deuteronômio 4:24)

A tradução desse versículo, pela Bíblia de Jerusalém:

Pois teu Deus Iahweh é fogo devorador. Ele é um Deus ciumento.


Outras traduções, como a Almeida, por exemplo, preferem trocar ciumento por zeloso. Assim o texto fica um bocadinho ambíguo, pois zeloso significa ciumento mas também pode ser entendido como o que demonstra cuidado, que vigia, que dispensa grande atenção (Houaiss). A palavra hebraica empregada (קנא - caná) aparece mais de trinta vezes no Velho Testamento e seu significado como ciumento é claro. Em Deuteronômio ainda estamos longe do monoteísmo. Trata-se ainda de monolatria. Ou seja, Iaweh é o nosso deus, mas existem os deuses dos outros.
E Iaweh tem ciúme dos outros deuses. E zela para que o seu povo seja devoto apenas dele. Para isso, não hesita muitas vezes em matar ou mandar matar os que fogem da linha.

Mais adiante os judeus evoluem para o monoteísmo. Deus não precisa mais ser ciumento pois já não existem rivais.

Com o cristianismo a ênfase passará a ser dada ao deus amoroso.

Portanto, não basta você acreditar em Deus. É preciso decidir em qual deles acredita.

Jornalista brasileiro

(com diploma, claro)

Em matéria esportiva, no portal UOL, hoje, lemos:

O ex-jogador da seleção brasileira, Palmeiras e Santos, entre outros, chegou a pensar em se matar mediante a penúria financeira que vivia antes de engatar de vez [...]

Mais adiante:

A pane psicológica veio no momento conjunto: no mesmo tempo que os pais morreram, os irmãos não conseguiam arcar com uma dívida de três meses de aluguel de um cortiço em Santos, onde moravam. 

Os grifos são meus, mas talvez fosse o caso de grifar a matéria toda.
Que os trechos em que o jogador fala sejam versados em Português ruim é compreensível.

O fantástico é o jornalista conseguir escrever em uma língua pior do que a do jogador.

Será que o jornalista que escreveu essas pérolas já viu alguém se matar por meio de penúria financeira?

É simples, digo eu: o indivíduo deixa seu dinheiro na poupança e não fica com nenhum tostão. Aí fica sem ter o que comer e morre. Não deixa de ser uma bela forma de suicídio

Quanto ao tal momento conjunto já não consegui firmar uma opinião..

Agora:  o Oscar vai para "no mesmo tempo que os pais morreram".

Palmas!

domingo, 19 de janeiro de 2014

Por uma imprensa livre

Livre das discussões bizantinas.



Desde tempos quase imemoriais as discussões políticas, no Brasil, se dão em termos absolutamente irracionais.
Quando eu ainda estudava na Escola Politécnica da USP, início da década de 60, minha mãe tinha em casa uma pequena TV em branco e preto, daquelas em que tínhamos de ajustar com certa frequência o horizontal e o vertical da imagem para que ela ficasse razoavelmente visível. Isso quando ainda não se sonhava com controle remoto.
Pois nessa época, depois que minha mãe assistia às telenovelas da TV Tupi e ia dormir, eu ficava a acompanhar debates de cunho político na TV.
Lembro-me da deputada Conceição da Costa Neves, que havia sido vedete de teatro de revista, a discutir com outros debatedores o candente dilema:
Salário é inflacionário ou não é?

Passados mais de cinquenta anos, a discussão no Brasil, atualmente, é:
Os rolezinhos em shoppings são manifestação progressista ou não?

Talvez os petistas tenham razão. A continuar a discussão nesse nível, melhor será acabar com qualquer discussão e permitir apenas o endeusamento do Governo.

sábado, 11 de janeiro de 2014

A leitura da Bíblia - 3

Um aspecto importante da leitura da Bíblia é que na chamada “leitura devocional” não se dá a devida autonomia a cada um dos livros que compõem o livro sagrado.
O pesquisador Bart Ehrman, em seu livro “Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?” (tradução brasileira de Jesus, interrupted, 2009. No Brasil, publicado em 2010, Ediouro) faz uma comparação entre as narrativas da morte de Jesus em Marcos e em Lucas.



Belo exemplo de como as diferenças na narrativa podem ajudar a compreender a mensagem que cada autor quer passar ao leitor.
Vou tentar resumir a análise de Ehrman, que ocupa – na tradução brasileira – as páginas 79 a 86.

A morte de Jesus em Marcos:
“Na versão de Marcos para a história (Marcos 15:16-39) Jesus é condenado à morte por Pôncio Pilatos, escarnecido e agredido pelos soldados romanos e levado para ser crucificado. Simão Cirineu carrega sua cruz. Jesus não diz nada durante todo o caminho. Os soldados crucificam Jesus e ele ainda assim não diz nada. Os dois ladrões crucificados ao seu lado debocham dele. As pessoas que passam debocham dele. Os líderes judaicos debocham. Jesus fica em siêncio até o fim, quando solta o grito infeliz: 'Eloi, Eloi, lemá sabachtháni', que Marcos traduz do hebraico para seus leitores como: 'Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?' Alguém entrega a Jesus uma esponja com vinagre para beber. Ele dá o último suspiro e morre. Imediatamente acontecem duas coisas: a cortina do Templo se rasga ao meio e o centurião que observava reconhece: 'Verdadeiramente este homem era Filho de Deus'.”
“A questão é que Jesus foi rejeitado por todos: traído por um dos seus, negado três vezes por seu seguidor mais próximo, abandonado por todos os discípulos, rejeitado pelos líderes judaicos, condenado pelas autoridades romanas, escarnecido pelos sacerdotes, pelos passantes e até mesmo pelos dois outros crucificados ao seu lado. […] Ele morre em agonia, sem saber por que tem de morrer.”
“Mas o leitor sabe a razão. Logo após Jesus morrer, a cortina se rasga ao meio e o centurião faz sua confissão. A cortina rasgada ao meio mostra que, com a morte de Jesus, Deus está disponível para seu povo diretamente, e não por intermédio dos sacrifícios feitos pelos sacerdotes judaicos no Templo. A morte de Jesus é um resgate (ver Marcos 10:45). E alguém se dá conta disso imediatamente: não os seguidores mais próximos de Jesus ou os espectadores judeus, e sim o soldado pagão que acabou de crucificá-lo. A morte de Jesus leva à salvação, e são os gentios que vão reconhecer isso. Não é um relato desinteressado do que 'realmente' aconteceu quando Jesus morreu. É teologia em forma de narrativa.”
“[...] a versão de Marcos para a morte de Jesus é um modelo para compreender a perseguição aos cristãos.”

A morte de Jesus em Lucas:
“Em Lucas [Lucas 23:26-49], como em Marcos, Jesus é traído por Judas, negado por Pedro, rejeitado pelos líderes judeus e condenado por Pôncio Pilatos, mas não é escarnecido e agredido pelos soldados romanos. […] Em Lucas, Jesus é levado para ser executado, e Simão Cirineu é obrigado a carregar sua cruz. Mas Jesus não fica em silêncio enquanto segue para sua crucificação. No caminho, ele vê mulheres chorando pelo que acontece a ele, vira-se para elas e diz: 'Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas e por vossos filhos!' (Lucas 23:28) […] Jesus não parece abismado com o que lhe acontece. Está mais preocupado com aqueles ao seu redor do que com seu próprio destino.
Além disso, ele não fica em silêncio enquanto é pregado à cruz, como em Marcos. Em vez disso, ele faz uma prece: 'Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem' (Lucas 23:34). Jesus parece ter uma ligação direta com Deus, e está mais preocupado com as pessoas que estão fazendo aquilo com ele do que consigo mesmo. […]  Jesus não está, de modo algum, confuso com o que ou por que isso acontece a ele. Está completamente calmo e no controle da situação; […]
A escuridão toma a Terra, e a cortina do Templo é rasgada enquanto Jesus ainda está vivo, em contraste com Marcos. Aqui a cortina rasgada não indica que a morte de Jesus traz a salvação – já que ele ainda não morreu. Em vez disso, mostra que sua morte é 'a hora das trevas', como diz antes no Evangelho (22:53), e simboliza o julgamento do povo judeu por Deus. [...]
Mais importante que tudo: em vez de ao fim dar um grito, exprimindo sua sensação de absoluto abandono ('Por que me abandonaste?'), em Lucas, Jesus reza a Deus em voz alta, dizendo: 'Pai, em tuas mãos entrego meu espírito'. Então dá o último suspiro e morre (23:46). […]
Qual teria sido o objetivo de Lucas ao modificar o relato de Marcos, de modo que Jesus não morresse mais em agonia e desespero. […]
Lucas estaria mostrando aos cristãos um modelo para seu sofrimento – como Jesus, o mártir perfeito que segue para a morte confiante em sua própria inocência, seguro da presença palpável de Deus em sua vida, calmo e no controle da situação, sabendo que o sofrimento é necessário para ter a recompensa do Paraíso e que tudo logo estará terminado, dando lugar a uma existência abençoada na vida a seguir. “

Conclusão:
Essa leitura “horizontal” dos Evangelhos, ao invés da leitura contínua ("vertical"), com a comparação das narrativas dos diversos evangelistas para um mesmo episódio, permite uma compreensão melhor da mensagem de cada um dos autores.

“O problema é quando os leitores tomam esses dois relatos e os combinam em uma narrativa abrangente, na qual Jesus diz, faz e experimenta tudo o que é dito nos dois Evangelhos. Quando isso é feito, as mensagens de Marcos e Lucas se perdem completamente e são abafadas.Jesus já não está mais em profunda agonia, como em Marcos (posto que ele é confiante, como em Lucas), e já não está calmo e no controle, como em Lucas (uma vez que ele está desesperado, como em Marcos). […]
Quando, então, os leitores acrescentam Mateus e João à mistura conseguem um retrato de Jesus ainda mais confuso e combinado, imaginando equivocadamente terem reconstruído os acontecimentos como eles realmente se deram. Lidar dessa forma com as histórias é roubar de cada autor sua própria integridade e privá-lo do significado que ele transmite em sua história.”

Enfim: um estudo comparativo (“horizontal”) de textos que narram os mesmos episódios, pode ser mais frutífero que uma simples leitura contínua (“vertical”) da Bíblia.



quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A leitura da Bíblia - 2

Fico a imaginar um adolescente a ler a Bíblia do princípio ao fim.
A certa altura, esbarra em um ensinamento divino:
Abstém-te de toda palavra mentirosa. Não matarás o inocente e o justo, porque não absolverei o culpado. (Êxodo 23:7)
O adolescente continua a leitura. Mais adiante encontra uma confirmação dessa ordem de Deus mas com uma especificidade maior:
Não morrerão os pais pelos filhos, nem os filhos pelos pais. Cada um morrerá pelo seu próprio pecado. (Deuteronômio 24:16)
Até aí, tudo bem.
Porém, ao chegar à história do rei David as coisas se complicam.
É bastante conhecida, essa história:
David era o preferido de Deus. E cometera barbaridades.
Encantado por Bat-Sheva, mulher de um general de seu exército, aproveita que o marido - Urias - está na guerra para faturar a beldade. Fica, em seguida, preocupado com a possibilidade de a mulher ficar grávida e manda chamar o marido sob qualquer pretexto. O marido tendo voltado, o eventual filho pareceria ser dele. Mas o tal Urias é tão caxias, como se diz no Brasil, tão dedicado a seus deveres militares, que retorna da guerra mas nada de deitar-se com a mulher.
David, então, decide armar uma arapuca para que ele morra na guerra, o que de facto acontece.
David fica com a mulher dele. E realmente nasce um filho de David com Bat-Sheva.
É aí que Natan, porta-voz do Eterno, o procura para dar o recado de Deus.
David começa por reconhecer que pecou.
E Natan lhe diz o que Deus resolveu fazer em função disso. O texto vai com fundo de flores a que faz jus.

(clique na figura para ampliá-la)

Que maravilhosa lição de coerência e de lógica recebe nosso adolescente imaginário.

Para poupar o seu queridinho David, Deus manda às favas seus próprios mandamentos e mata o filho inocente do pecador David.

Obs.: Todas as citações bíblicas, neste texto, foram extraídas da Versão Católica. Mas as outras traduções para o Português não diferem significativamente desta, no que respeita aos textos mencionados. Apenas alterei os nomes próprios (troquei Davi por David, por exemplo).

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A leitura da Bíblia

Resolvi aderir ao hábito de várias pessoas, no Facebook, de publicar versículos bíblicos com fundo bucólico. As pessoas devem esperar, com isso, despertar os leitores para a meditação sobre a Palavra de Deus.

Quanto a mim, gostaria de convidar as pessoas a meditar sobre a conveniência ou não de se incentivar crianças a lerem a Bíblia de cabo a rabo. Quando eu era garoto, era incentivado a ler toda a Bíblia ao longo de um ano. Bastava ler 3 capíitulos por dia e 5 aos domingos. Por outro lado, era proibido de ler, por exemplo, Machado de Assis.

Talvez esse versículo que destaco aqui - e todo o capitulo 23 do livro de Ezequiel - ajude as pessoas a preferir encarar a Bíblia como leitura para adultos.



(clique na imagem para ampliá-la)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Com a palavra, Lula

Estou a ler Assassinato de Reputações - Um crime de Estado, depoimento de Romeu Tuma Junior a Claudio Tognolli (557 páginas, 2013, 1º edição, Topbooks, Rio de Janeiro).



Tuma Junior é da carreira policial e enveredou pela política, assim como fez seu pai. Exerceu mandato no Legislativo obtido pelo voto popular. Por fim, foi levado à Secretaria Nacional de Justiça "na cota pessoal de Lula", no governo deste.
Foi afastado em meio a suspeitas de promiscuidade com criminosos e decidiu jogar no ventilador as informações que reuniu durante anos de atuação na polícia e na política.

Não vem ao caso - aqui - se o que Tuma afirma é verdadeiro ou não. Nem eu teria capacidade para avaliar isso. Meu foco é outro.

Ora, um notório homem público coloca em livro acusações terríveis contra um ex-presidente da República e - digo eu - a mais importante figura da política brasileira na atualidade.
Para ficar em um único exemplo, Tuma afirma - e dá muitos detalhes a respeito - que Lula, na época da ditadura militar, década de 70, foi informante do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), órgão da repressão a movimentos considerados subversivos.

Será possível que Lula não processe Tuma em função de tais denúncias?
Ficará calado, mais uma vez?

A mim parece claro que Lula tem a obrigação moral e política ou de provar que tudo que Tuma afirma é mentira ou de processá-lo para que Tuma seja compelido a provar que fala a verdade.

Não adianta a claque petista fazer o mesmo que faz em outras situações: desqualificar o acusador para invalidar as acusações.

Desta vez as acusações são pesadas demais para que se utilize esse tipo de chicana.

Espero o pronunciamento de Lula.


domingo, 5 de janeiro de 2014

Os azares do câmbio


Quando vim para Portugal, cada euro que eu comprava me consumia qualquer coisa da ordem de R$ 2,50.
Hoje, para comprar um euro gasto algo da ordem de R$ 3,30. Um aumento de uns 32%, em menos de 3 anos.
 Mesmo assim, não reclamo tanto quanto os portugueses que recebem seus recursos aqui mesmo em Portugal.
Isso não significa que eu seja melhor. Significa que sou mais complacente. Afinal, para quem viveu tantos planos económicos frustrados, no Brasil, uma variação dessas no câmbio é peanuts.

Mas gostaria muito que o euro parasse de valorizar-se em relação ao real.

Quem me mandou dar aulas de marxismo para o Ministro da Fazenda brasileiro (Guido Mantega), lá nos idos de 1.970?

Agora chegou a factura.

sábado, 4 de janeiro de 2014

A fúria do tempo


Faltavam alguns minutos para as três da madrugada quando fui acordado por ruídos fortes e estranhos que vinham da sala.
Corri para ver o que era aquilo.
Uma incrível quantidade de granizo desabava sobre Matosinhos e Porto. Durou algo em torno de 15 minutos e deixou em seu lugar uma forte mas normal chuva.
Voltei a dormir.
Durante o dia, constatei - pelo noticiário da TV - que aquilo não fora um acontecimento corriqueiro.

Lembrei-me de uma história contada por meu colega de trabalho Heinz Forrer, ainda na década de 70.

Ele já percorrera boa parte do Brasil, a voar nos mais variados tipos de aeronaves. Certa vez, sentou-se ao lado de uma jovem senhora de origem japonesa. O voo transcorria normalmente até que o avião chegou a uma zona de forte turbulência. As máscaras de oxigénio caíram à frente dos passageiros. Heinz reparou que a nissei a seu lado aplicou a máscara ao rosto com toda a calma. Enquanto isso, notou como era grande a quantidade de terços que ocupavam os bolsos dos demais viajantes. Ao chegarem sãos e salvos ao destino, Heinz elogiou a companheira de viagem pela calma demonstrada durante a turbulência. Ela, surpresa:
- Mas não é sempre assim?!

 E eu, durante a madrugada, pensei da mesma maneira que ela. Presumi que granizo desabava sobre o Porto com frequência... As fotos que seguem são de ontem. Chovia muito, mas ainda não havia pedras.

 Diga-se: o Porto é lindo, mesmo debaixo de chuva.




(clique nas fotos para ampliá-las)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Padre Vieira e a escravidão

Ainda de minha leitura de Palmares - A Guerra dos escravos, de Décio Freitas, 2ª edição, 1978, Edições Graal, retiro a opinião do famoso e sempre louvado padre António Vieira sobre a política de compromisso que muitos defendiam em relação aos palmarinos, em oposição à ideia de submetê-los pela força das armas:




Depois da morte de D. João IV, em cujo reinado fora "o verdadeiro rei de Portugal", no dizer de Oliveira Martins, o célebre jesuíta [padre Vieira] caíra em desgraça política. Os sucessores do restaurador da independência portuguesa não lhe tinham confiança. D. Pedro II, por exemplo, acoimava-o de "pérfido" e "intrigante", sem dúvida um juízo demasiado severo na boca de quem esbulhara o irmão Afonso VI do trono e da esposa. Apesar disso, o padre continuava a exercer considerável influência nos negócios políticos portugueses, conforme se depreende da copiosa correspondência que do seu retiro baiano de Quinta do Tanque, "o meu deserto", como dizia com amargura, expedia para importantes personagens de Portugal. Especialmente no que concernia a assuntos brasileiros, nem o rei D. Pedro II nem seus ministros deixavam jamais de ouvi-lo.

 Faço uma pausa no texto de Décio Freitas para chamar a atenção do leitor para a não desprezível semelhança entre a situação política do padre Vieira, nos finais do século XVII, e a do ex-ministro José Dirceu nos dias actuais.

 Mas voltemos ao texto de Freitas:
Foi assim que, no princípio do ano de 1691, o desembargador do paço e secretário do rei, Roque Monteiro Paim, escreveu-lhe pedindo conselho sobre alguns problemas do Brasil, entre os quais Palmares. Paim queria a opinião de Vieira sobre a proposta de um religioso italiano de ir a Palmares para convencer os negros a deporem armas. Em extensa carta de 2 de julho de 1691, Vieira opôs-se energicamente a tal missão: 

 "Este padre é um religioso italiano de não muitos anos, e, posto que de bom espírito e fervoroso, de pouca ou nenhuma experiência nestas matérias. Já outro de maior capacidade teve o mesmo pensamento; e posto em consulta julgaram todos ser impossível e inútil por muitas razões. Primeira: porque se isto fosse possível havia de ser por meio dos padres naturais de Angola que temos, aos quais crêem, e deles se fiam e entendem, como de sua própria pátria e língua; mas todos concordam em que é matéria alheia de todo o fundamento e esperança. Segundo: porque até deles neste particular se não hão de fiar por nenhum modo, suspeitando e crendo sempre que são espias dos governadores, para os avisarem secretamente de como podem ser conquistados. Terceira: porque bastará a menor destas suspeitas, ou em todos ou em alguns, para os matarem com peçonha, como fazem oculta e secretamente uns aos outros. Quarta: porque ainda que cessassem dos assaltos que fazem no povoado dos portugueses, nunca hão de deixar de admitir aos de sua nação que para eles fugirem. Quinta: fortíssima e total, porque sendo rebeldes e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo e atual, de que não podem ser absoltos, nem receber a graça de Deus, sem se restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão de fazer". 
(...) 
A rebeldia dos palmarinos era um pecado de que somente se poderiam remir submetendo-se novamente à escravidão. Em outras palavras, para ele a propriedade escravista era legitimada pela religião.


Por fim, avaliava o resultado de uma eventual amnistia ampla e irrestrita aos palmarinos, com a conclusão de que seria uma política desastrosa:

"Porém esta mesma liberdade assim considerada seria a total destruição do Brasil, porque conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido o ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos Palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro que o próprio corpo".

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Santo António lutou em Palmares

Diga-se logo que nunca critico pessoas pela sua religiosidade e por suas crenças. Minha crítica é sempre voltada para as crenças em si e suas expressões sociais.



Estou a terminar a leitura de Palmares - A Guerra dos Escravos, de Décio Freitas, 2ª edição, 1978, Edições Graal.
Apesar de discordar do autor em algumas de suas conclusões sobre os episódios de um século em torno dessa fantástica experiência de uma república negra no Brasil colonial, reconheço que o estudo baseia-se em farta documentação (mais ainda essa segunda edição) e, por isso, merece atenção.
Sobre a obra em si, voltarei em outro texto.

Agora me ocupo de um facto insólito, narrado às páginas 145 e 146. Ao tratar de algumas das muitas tentativas de destruir Palmares pelas armas, o autor nos traz esse delicioso informe (mantenho a grafia do livro):

Foi incorporado nesta expedição um novo e original soldado: Santo Antônio. Em setembro de 1685, Souto Maior mandara abrir assento de praça ao Santo a fim de seguir na primeira expedição que marchasse contra Palmares. Uma vez que a imagem pertencia ao convento de São Francisco da cidade de Olinda, o governador expediu ordens para que as importâncias correspondentes ao fardamento e ao soldo do soldado fossem pagas ao síndico do aludido convento. Envergando um uniforme de linha e confiado a um religioso franciscano, o Santo tomou parte nesta e em todas as campanhas que até o final se realizaram contra Palmares. Os soldados se recomendavam à sua proteção e os franciscanos invocavam os serviços prestados na luta contra os palmarinos para pleitear em seu favor promoções e vantagens pecuniárias. Em 1692 uma carta régia mandou que o soldo a que tinha direito o Santo-soldado corresse pelos cofres do senado da câmara de Olinda. Diante das dúvidas suscitadas pelo ouvidor da comarca sobre a legalidade do pagamento, outra carta régia do mesmo ano homologou os soldos que a câmara pagava ao santo. Em 1716, o governador D. Lourenço de Almeida escreveu ao rei para informar que, quando passava em revista a infantaria, lhe havia sido apresentada uma petição de Santo Antônio, na qual este alegava que apesar dos seus grandes serviços nas guerras contra os Palmares, percebia apenas o soldo de praça de soldado, pelo que ele governador promovera o santo ao posto de tenente da fortaleza do seu nome, Santo Antônio dos Coqueiros da Barra do Recife, com o soldo mensal de 2$700, o que foi aprovado pelo Conselho Ultramarino no ano seguinte. Em 1754, a câmara de Igaraçu pediu ao rei permissão para alistá-lo como seu vereador, vencendo a respectiva propina. Resolveu o rei que se desse ao santo a esmola de 27$000 por ano, com o título de Protetor da câmara. Em 1819, os franciscanos pretenderam que o santo fosse promovido ao posto de sargento-mor, coisa a que se opôs o governador Luiz do Rego, pois "Santo Antônio, oficial que nunca morre, há de necessariamente chegar um dia a gozar debaixo deste título do soldo de marechal-de-exército". Mas até 1890 o santo gozou do soldo de alferes, à razão de 10$500 mensais, pelos grandes serviços prestados na luta contra os negros palmarinos.

Acrescente-se que o caso acima narrado está longe de ser único. Mesmo se ficarmos no mesmo santo.
E há católicos que criticam as artimanhas dos pastores, bispos e apóstolos das novas igrejas caça níqueis...

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Reinício




E o ano começou, no Porto, com muita, mas muita, chuva.
E cá em casa com arroz de marisco dos melhores e vinho Quinta Dona Doroteia Reserva 2011, do Douro.
Depois de um  queijo de ovelha com geleia da prima Eduarda, de Vinhais, um cognac.

Falta ainda criar coragem para, amanhã, enfrentar a chuva e sair à procura de uma agenda para o ano que já disparou na frente.

Já agora, continuação de bom ano novo!