quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Santo António lutou em Palmares

Diga-se logo que nunca critico pessoas pela sua religiosidade e por suas crenças. Minha crítica é sempre voltada para as crenças em si e suas expressões sociais.



Estou a terminar a leitura de Palmares - A Guerra dos Escravos, de Décio Freitas, 2ª edição, 1978, Edições Graal.
Apesar de discordar do autor em algumas de suas conclusões sobre os episódios de um século em torno dessa fantástica experiência de uma república negra no Brasil colonial, reconheço que o estudo baseia-se em farta documentação (mais ainda essa segunda edição) e, por isso, merece atenção.
Sobre a obra em si, voltarei em outro texto.

Agora me ocupo de um facto insólito, narrado às páginas 145 e 146. Ao tratar de algumas das muitas tentativas de destruir Palmares pelas armas, o autor nos traz esse delicioso informe (mantenho a grafia do livro):

Foi incorporado nesta expedição um novo e original soldado: Santo Antônio. Em setembro de 1685, Souto Maior mandara abrir assento de praça ao Santo a fim de seguir na primeira expedição que marchasse contra Palmares. Uma vez que a imagem pertencia ao convento de São Francisco da cidade de Olinda, o governador expediu ordens para que as importâncias correspondentes ao fardamento e ao soldo do soldado fossem pagas ao síndico do aludido convento. Envergando um uniforme de linha e confiado a um religioso franciscano, o Santo tomou parte nesta e em todas as campanhas que até o final se realizaram contra Palmares. Os soldados se recomendavam à sua proteção e os franciscanos invocavam os serviços prestados na luta contra os palmarinos para pleitear em seu favor promoções e vantagens pecuniárias. Em 1692 uma carta régia mandou que o soldo a que tinha direito o Santo-soldado corresse pelos cofres do senado da câmara de Olinda. Diante das dúvidas suscitadas pelo ouvidor da comarca sobre a legalidade do pagamento, outra carta régia do mesmo ano homologou os soldos que a câmara pagava ao santo. Em 1716, o governador D. Lourenço de Almeida escreveu ao rei para informar que, quando passava em revista a infantaria, lhe havia sido apresentada uma petição de Santo Antônio, na qual este alegava que apesar dos seus grandes serviços nas guerras contra os Palmares, percebia apenas o soldo de praça de soldado, pelo que ele governador promovera o santo ao posto de tenente da fortaleza do seu nome, Santo Antônio dos Coqueiros da Barra do Recife, com o soldo mensal de 2$700, o que foi aprovado pelo Conselho Ultramarino no ano seguinte. Em 1754, a câmara de Igaraçu pediu ao rei permissão para alistá-lo como seu vereador, vencendo a respectiva propina. Resolveu o rei que se desse ao santo a esmola de 27$000 por ano, com o título de Protetor da câmara. Em 1819, os franciscanos pretenderam que o santo fosse promovido ao posto de sargento-mor, coisa a que se opôs o governador Luiz do Rego, pois "Santo Antônio, oficial que nunca morre, há de necessariamente chegar um dia a gozar debaixo deste título do soldo de marechal-de-exército". Mas até 1890 o santo gozou do soldo de alferes, à razão de 10$500 mensais, pelos grandes serviços prestados na luta contra os negros palmarinos.

Acrescente-se que o caso acima narrado está longe de ser único. Mesmo se ficarmos no mesmo santo.
E há católicos que criticam as artimanhas dos pastores, bispos e apóstolos das novas igrejas caça níqueis...

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