Ainda de minha leitura de Palmares - A Guerra dos escravos, de Décio Freitas, 2ª edição, 1978, Edições Graal, retiro a opinião do famoso e sempre louvado padre António Vieira sobre a política de compromisso que muitos defendiam em relação aos palmarinos, em oposição à ideia de submetê-los pela força das armas:
Depois da morte de D. João IV, em cujo reinado fora "o verdadeiro rei de Portugal", no dizer de Oliveira Martins, o célebre jesuíta [padre Vieira] caíra em desgraça política. Os sucessores do restaurador da independência portuguesa não lhe tinham confiança. D. Pedro II, por exemplo, acoimava-o de "pérfido" e "intrigante", sem dúvida um juízo demasiado severo na boca de quem esbulhara o irmão Afonso VI do trono e da esposa. Apesar disso, o padre continuava a exercer considerável influência nos negócios políticos portugueses, conforme se depreende da copiosa correspondência que do seu retiro baiano de Quinta do Tanque, "o meu deserto", como dizia com amargura, expedia para importantes personagens de Portugal. Especialmente no que concernia a assuntos brasileiros, nem o rei D. Pedro II nem seus ministros deixavam jamais de ouvi-lo.
Faço uma pausa no texto de Décio Freitas para chamar a atenção do leitor para a não desprezível semelhança entre a situação política do padre Vieira, nos finais do século XVII, e a do ex-ministro José Dirceu nos dias actuais.
Mas voltemos ao texto de Freitas:
Foi assim que, no princípio do ano de 1691, o desembargador do paço e secretário do rei, Roque Monteiro Paim, escreveu-lhe pedindo conselho sobre alguns problemas do Brasil, entre os quais Palmares.
Paim queria a opinião de Vieira sobre a proposta de um religioso italiano de ir a Palmares para convencer os negros a deporem armas. Em extensa carta de 2 de julho de 1691, Vieira opôs-se energicamente a tal missão:
"Este padre é um religioso italiano de não muitos anos, e, posto que de bom espírito e fervoroso, de pouca ou nenhuma experiência nestas matérias. Já outro de maior capacidade teve o mesmo pensamento; e posto em consulta julgaram todos ser impossível e inútil por muitas razões. Primeira: porque se isto fosse possível havia de ser por meio dos padres naturais de Angola que temos, aos quais crêem, e deles se fiam e entendem, como de sua própria pátria e língua; mas todos concordam em que é matéria alheia de todo o fundamento e esperança. Segundo: porque até deles neste particular se não hão de fiar por nenhum modo, suspeitando e crendo sempre que são espias dos governadores, para os avisarem secretamente de como podem ser conquistados. Terceira: porque bastará a menor destas suspeitas, ou em todos ou em alguns, para os matarem com peçonha, como fazem oculta e secretamente uns aos outros. Quarta: porque ainda que cessassem dos assaltos que fazem no povoado dos portugueses, nunca hão de deixar de admitir aos de sua nação que para eles fugirem. Quinta: fortíssima e total, porque sendo rebeldes e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo e atual, de que não podem ser absoltos, nem receber a graça de Deus, sem se restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão de fazer".
(...)
A rebeldia dos palmarinos era um pecado de que somente se poderiam remir submetendo-se novamente à escravidão. Em outras palavras, para ele a propriedade escravista era legitimada pela religião.
Por fim, avaliava o resultado de uma eventual amnistia ampla e irrestrita aos palmarinos, com a conclusão de que seria uma política desastrosa:
"Porém esta mesma liberdade assim considerada seria a total destruição do Brasil, porque conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido o ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos Palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro que o próprio corpo".
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