domingo, 11 de abril de 2004

Um pontinho no nariz



- Vamos brindar.
- Isso. Ao acaso que fez a gente se conhecer.

E que belo acaso. Ele não cansava de admirar o rosto dela, os
cabelos, o sorriso. Desde que a encontrara vivia em estado de
graça. Não havia dúvida. Estava absoluta e totalmente
enamorado. Já eram seis meses de relação. A vida dele ganhara
novo sentido. Sentia-se preenchido, completo.

- Mais um chopp?

O garçom quebrou o fluxo de lembranças e o trouxe de volta ao
presente. Lá estava ela diante dele. Os olhos grandes e
negros, o nariz perfeito. Olhou demoradamente para o nariz
dela, tentando analisar os fatores que o faziam impecável. E
de repente reparou em um detalhe que até então havia escapado
à sua observação. Um pontinho negro, quase invisível, a meio
caminho entre as sobrancelhas e a ponta do nariz, um pouco
para a direita do rosto. Nunca havia visto aquela pintinha,
ele que tanto observava aquele rosto, aquele nariz.

- Você não tinha essa pinta no nariz. Quando que apareceu?
- Errado. É de nascença. Você nunca reparou nela?
- Não. Seria capaz de jurar que ela apareceu de ontem pra hoje.
- É. Mas está aí há vinte e cinco anos.
- Vinte e quatro.
- Ah. Eu arredondo. Que diferença faz?

Nenhuma. Pra ele, ela não tinha idade. A perfeição é atemporal. Foram embora porque os dois tinham de trabalhar na segunda. Iriam se rever na quarta ou na quinta. Difícil esperar até lá. Difícil ficar sem ela, assim, dois ou três dias.

Na quinta se encontraram. Estranho. Será? Mas era. A pinta tinha aumentado. Já ocupava boa parte do nariz. Era marron, lisa.

- Não acha que devia consultar um médico?
- Acho que não. Tenho essa pinta desde sempre.
- Mas está aumentando.
- Tudo bem. Se você acha que é o caso...
- Não é questão de se eu acho. O problema não é o que eu acho.
- Tá bom. Não precisa se aborrecer. Vou marcar consulta. Pronto.

Semana seguinte se reencontraram. Incrível. A mancha já recobria quase todo o rosto.

- Você foi ao médico?
- Fui. Mas ele disse que é normal.
- Normal o quê?
- Normal. Essa pinta.
- Mas não é mais pinta. A mancha já cobre quase todo seu rosto.
- Não exagera. Você faz tempestade em copo d’água. O médico me disse pra tomar uma colher de chá de pouco caso de hora em hora. Acho que você devia fazer o mesmo.

Falar o quê. Ela parecia não se importar com a tal... coisa. Aquilo crescia a olhos vistos. E ela nada. Mas que incomodava incomodava.

Semana seguinte teve que viajar a trabalho. Não pôde vê-la. Foram se reencontrar só na véspera do dia dos namorados. Ela estava linda como sempre. Mas... É, é difícil reconhecer, mas aquela mancha estava tornando as coisas difíceis. Já cobria todo o rosto, parte do pescoço e um pouco do braço direito.

Conversaram um pouco. Sem entusiasmo da parte dele. Ela percebeu, claro. Perguntou se alguma coisa acontecera, ele disse que não e ficou por isso mesmo.

Marcaram um jantar para o dia seguinte. Seria o primeiro dia dos namorados dos dois.

Dia seguinte ela recebeu um telegrama lá pelas três da tarde. Era dele e dizia:

"Prezada Suzana: Por motivos contrários à minha vontade não poderei vê-la hoje. Grande abraço."

(baseado em Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso)

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