quinta-feira, 2 de setembro de 2004

Era uma vez - XI
Midifácio



(Se não é Prefácio, pois já vamos pra mais de dez posts, também não é Posfácio, dado que não pretendo parar por aqui)

Tudo que escrevo aqui, nestes “Era uma vez”, tem como fonte minha memória. É preciso ter em mente, também, que se trata de acontecimentos vividos em clima de sigilos e segredos. Tanto antes de minha prisão, quando era absoluto requisito de segurança não saber nomes, não perguntar nada, quanto já na prisão, onde as pessoas ainda aguardavam julgamentos militares e, portanto, era de bom tom não escarafunchar a vida alheia, o conhecimento dos factos era retalhado, truncado e, claro, muitas vezes intencionalmente deturpado, pelas mais variadas razões. Após a prisão, afastei-me propositadamente desse mundo “revolucionário”, tendo desde então poucas oportunidades de trocar informações com remanescentes dele.
Acima de tudo, é bom salientar que pretendo manter tais relatos em clima de memórias de caráter estritamente pessoal. Ou seja, não pretendo escrever a história de coisa alguma. Quero, só, contar histórias.
Para quem quiser relatos “objetivos” há alguns livros produzidos pela esquerda. Digo que esses livros têm mais “objetividade” do que minhas memórias porque, em geral, foram produzidos por várias pessoas e considerando documentos que restaram do “incêndio” da esquerda. Talvez seja melhor dizer que tais livros têm – não objetividade – mas inter-subjetividade. Mas isso já é outro assunto. Na Internet, há sítios tais como Tortura nunca mais – RJ, que cito porque parece ser o mais antigo desses grupos Tortura-nunca-mais e porque nele se encontram links para outros do mesmo tipo. Há, também, a “objetividade” dos relatos do pessoal “do lado de lá do balcão”. Estes são de uma objetividade particular: resultam do conhecimento de depoimentos dos presos, da inspeção de locais onde vários militantes foram presos e/ou mortos etc etc. São relatos assemelhados a catálogos de botânica, nos quais os “terroristas” e suas organizações são enumerados, classificados e esculhambados; suas ações são descritas como se se tratasse de boletins de ocorrência policial. Tudo isto é possível ler no sítio Ternuma (Terrorismo nunca mais). É muito informativo. Quem escreve, certamente esteve “” ou tem muita intimidade com quem esteve. “”, espero que esteja claro onde é.
Enfim, quero poder contar minhas histórias sem que me encham o saco, os de um lado ou de outro.
Se é evidente que não tenho a mais remota simpatia pelo então major Ustra (aliás, pensava eu que era Ulstra), que comandava a OBan (Operação Bandeirantes, ou DOI-CODI, ou o raio-que-o-parta) na época em que fiquei lá “hospedado”, também não morro de amores pelo Frei Betto, que ocupava a cela 17, quase em frente à minha, no pavilhão 2 do presídio Tiradentes.
“O mundo gira e a Lusitana roda”, dizia um comercial de uma empresa de mudanças que acho que não existe/roda mais.
Quanto a mim, o coronel-de-pijama Ulstra/Ustra pode ficar tranqüilo: não quero (nem posso) torturá-lo. E, já que tudo indica que a consciência não lhe traz desassossego, que viva sua vida e deixe-me viver a minha.
Quanto a Frei Betto, hoje em dia tem poder. É assessor do presidente da república para... para quê mesmo? Só faço votos de que ele continue a usufruir as delícias dos palácios. Afinal, a vida inteira lutou pra isso. Merece.
Amém.


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