terça-feira, 12 de abril de 2005

Era uma vez - XX
Bilhetes a Celina (1)


Outro dia, remexendo nas tralhas aqui de casa, encontrei um pacotinho amarrado com uma fita amarelada pelo tempo e coberto com um papel em que a letra de minha mãe – inconfundível – definia: “Bilhetes do Beto”. São meus recados à “manhê”, como eu a chamava na época. Escritos no presídio Tiradentes, anos 71, 72 e 73. Minha mãe os guardou. Quando, em 92, ela morreu, minha irmã mais velha os achou entre os guardados da matriarca. Repassou-os a mim. Agora, ao reencontrá-los, constato como eram prosaicos. Pediam mantimentos, davam conta da roupa suja que eu às vezes mandava para casa de minha mãe, coisas assim. De vez em quando, raramente, escapa algum comentário menos banal. Afinal, os bilhetes eram cuidadosamente censurados na saída do presídio.
Transcrevo os que achar que merecem algum registro. Este, por exemplo:
Oi, manhê!
25/4/72
[data anotada por minha mãe]
Por ter sido a mais recente, a visita de hoje foi a melhor de todas. A próxima será melhor ainda...
O advogado não apareceu
[era o Dr José Carlos Dias, sobre o qual falarei qualquer hora], como era de se esperar... De resto, tudo às mil maravilhas. Espero que aí fora tudo esteja como no melhor dos mundos possíveis.
Mando a lista, alguma roupa suja e vasilhas limpas (ou quase). Estou chegando aos nove meses de prisão. Talvez nasça uma maturidade maior disso tudo. Mas pra usar aonde? Esse mundo está cada vez mais idiota. Quando a gente se enriquece internamente a gente se sente meio anacrônico, como naquelas historinhas de máquina do tempo em que um fulano de 2134 volta a 1972 e acha tudo estranho, esquisito. Mas, paciência. O homem ainda vai demorar pra descobrir que tem de ser homem nas horas em que se comporta como animal e animal nas horas noturnas em que o obrigam a ser civilizado pra que o mundo não se desorganize pelo efeito corrosivo da descoberta do prazer. Pensar, quando é tempo de pensar. Sentir, quando é tempo de sentir. Salomão já sabia disso.
Um beijão (e outros para os outros), e Tchau!
Beto

1 comentário:

Anónimo disse...

Pai adorei este tambem. Quase nao tenho tempo de ler seu blog hj em dia, afinal o comunismo nao deu certo e nessa M do capitalismo eu trabalho para os outros ficarem ricos, sempre penso que talvez fosse diferente mas depois concluo que ia ser a mesma M neste ponto entao fazer o que? Bom fico Feliz que qdo eu me aposentar ja que todos os seus blogs (espero eu) estarao guardados eu vou poder ler e aproveitar! Bjs Le