sexta-feira, 15 de abril de 2005
Era uma vez - XXIII
Baixinho e a Palhaçada
João Batista de Souza (pô, Baixo, será que ainda lembro direito teu nome?) foi militante da VAR/Palmares. Moreno, um metro e cinqüenta ou pouco mais, bigode cuidadosamente cultivado, sorriso de ironia pra lá de fina, aprendeu muita coisa na juventude. Esqueceu de aprender o que era medo.
Sei quase nada sobre sua vida. Sei que entrou pra militância política de cabeça, tronco e membros. Participou de uma porção de ações armadas. Trocando em miúdos, assaltou bancos, participou de seqüestros, o escambau.
À medida que a esquerda foi se desmilingüindo, Baixinho foi assumindo cada vez mais responsabilidades. Belo dia, Baixinho estava a morar em uma casinha minúscula, abarrotada de armas: revólveres, pistolas, muita munição, metralhadoras, bombas etc etc. Por caminhos que não vêm ao caso, a repressão chegou. Cercou a casa. Deu voz de prisão ao Baixinho. Ele respondeu atirando. Transformaram a casa em peneira. Baixinho resolveu apelar para as bombas. Pegou a primeira e lançou. Fez puuuf e nada. Lançou a segunda. Idem ibidem. Desistiu das bombas. Gastou toda a munição de que dispunha. Quando tudo acabou, saiu de mãos para o alto, melhor, de mão para o alto: com a outra segurava uma maçã.
Quando a VAR/Palmares foi a julgamento, em tribunal militar, o famigerado juiz Paiva no comando da pantomima, Baixinho era um dos menos importantes entre os militantes julgados. O julgamento cumpriu seu rito. Quando os juízes se retiravam da sala para deliberar sobre as penas, Baixinho virou-se para alguém a seu lado e comentou, em decibéis não suficientemente reduzidos:
- Isso aqui é uma palhaçada.
Não deu outra. Os juízes voltaram e o Paiva começou a ler as penas: fulano dois anos, beltrano três anos, cicrano dois anos etc etc, todos nesse diapasão.
De repente, pausa e:
- E, para deixar claro que isto aqui não é uma palhaçada, João Batista de Souza, DOZE anos.
Ô comentariozinho caro!
Baixinho pegou mais penas em outros processos. Aos poucos, chegou (se não me falha a memória) a qualquer coisa em torno de cem anos de condenação. Era resistência à prisão, ações armadas, tentativas de assassinato etc e tal. Só não sei se houve condenação pelo fato de ter se entregado comendo maçã. Particularmente eu, penso que deveria haver punição severa pra isso. Sempre deixei isso claro pro Baixo.
Resumo: o Baixinho era o cara que todo mundo achava que jamais sairia da cadeia. E o que mais doía na gente é que, quando chegava a visita de sábado, das famílias, o Baixo tinha de ficar na cela, sozinho. Era um dos poucos que não tinham parentes, não tinham ninguém. Portanto, não podia descer para o pátio.
Claro que a gente não ia deixar isso ficar assim, né mesmo? Começou o movimento pra arranjar visita pro Baixinho. Alguém arrumou uma menina que se dispôs a visitá-lo. Acho que se chamava Rosângela. Sei lá, sei que era a Rô. Não é que ela se apaixonou pelo Baixo?!? O cara era muito feio! Fazer o quê.
(se ele ler isto aqui ele me trucida)
E eis que o Baixinho virou rei. Recebia visita e bolos, tortas, doces, o diabo.
Mais: os processos dele subiram pro Superior Tribunal Militar (no qual os julgamentos eram menos políticos e mais técnicos) e ele foi sendo gradualmente absolvido.
Resultado: belo dia, chega o carcereiro e chama o Baixo.
Rua, meu. Rua.
Meu deus, até hoje dá vontade de chorar, tamanha a alegria que dominou todos na cela.
Beijo, Baixinho.
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