sábado, 2 de outubro de 2004

Acertando os ponteiros com mamãe



Vem cá, mãe. Fica aqui, pertinho de mim, que eu quero dizer umas coisas. Sabe, hoje arrumei um tempinho pra gente conversar. Faz tempo que tenho essa vontade de fazer uma espécie de acerto de contas, de esclarecer alguns factos, ou não esclarecer mas tirar da frente, falar sobre eles por catarse, pra descarregar.
Não sei se a senhora sabe, mas tenho culpas que vêm lá do meu parto. A senhora era magra, rosto lindo adornado por esse cabelo preto, preto. Depois que nasci, ficou gordinha. Nunca mais voltou àquele ar de mocinha que os dois partos anteriores não lhe tinham roubado. Sei que não podia fazer nada, mas me culpo. De algum jeito, me culpo.
Mas deixa pra lá. Vamos falar de coisas boas. Sempre me vali de sua proteção em relação a papai. Ele era muito severo. Qualquer coisa, cinta. Já a senhora não. Só dava chinelada. E mesmo assim, lembra?, quando vinha de chinelo em punho tinha o cacoete de pôr a língua pra fora e mordê-la de raiva. E eu a imitava e a senhora punha-se a rir. Pronto, talvez uma chineladinha. Já a segunda se dissolvia em perdão.
Lembra do exame de admissão ao ginásio? Papai tinha certeza de que eu não entrava no Colégio Canadá nem matando. Achava que eu não estudava, não me esforçava, coisa e tal. Aí ele fez a besteira. Me prometeu uma bicicleta, se eu passasse no exame. Porra (desculpa aí, mãe, sei que a senhora não gosta de palavrão). Justo pra mim, cujo sonho maior era uma bicicleta. Lembra?, tinha o exame de Português, eliminatório. Quem passava, prestava os outros exames: matemática, história e geografia. Fiz o exame de Português, voltei pra casa e encontrei o pai ansioso. Queria saber tudo que tinha caído no exame e quais tinham sido minhas respostas. Fui explicando as questões, uma a uma. Me lembro de ter me referido a uma questão que, de tão fácil, eu não entendia porque tinha sido posta no exame. Perguntava-se, a propósito de algumas formas imperativas afirmativas, como seria a negação delas. Algo do tipo: “Pendura”. Qual a negativa? E eu não tive dúvida: “Não pendura”.
Meu pai queria me matar: eu sabia. Esse garoto está reprovado. Eu sabia. E disse cobras, talvez lagartos. Nem me lembro bem, claro.
Domingo seguinte, lembra? mãe, a senhora talvez não lembre. Eu, jamais vou esquecer. Fomos à banca de jornais comprar A Tribuna pra ver o resultado da prova. Puta que pariu (desculpa aí, mãe), eu tinha sido o primeiro colocado. Empatado com um garoto português, pode? Papai, óbvio, sentiu a vaca caminhar ao brejo. Bicicleta à vista. E veio querer negociar, o puto (porra, mãe, perdão, extrapolei). Não queres um relógio, ao invés da bicicleta? Foi a senhora, mãe, foi a senhora que me abriu os olhos. Não, filho. Fica com a bicicleta. Não troca por relógio não.
Aquela bicicleta foi uma das coisas mais significativas de minha vida. Será que é exagero dizer isso, mãe. Acho que não, sabe. Lembra?, um dia me roubaram a bicicleta. Caralho (desculpa, mãe), foi um sentimento de perda fudido (perdão aí). Mas o Luiz Carlos, meu amigo, lembra?, achou o cara com a minha bicicleta e fez o cara devolver. Lembra? Só naquele tempo essas coisas aconteciam.
E foi tanta coisa daí em diante, né mãe. A senhora me arranjou o primeiro aluno particular de matemática. Foi a primeira graninha que eu descolei com meu trabalho. Claro, não vale contar o que eu ganhava da senhora engraxando sapatos. Porra (perdão), o aluno era ótimo. Foi uma estréia profissional muito feliz.
Agora, quando a gente veio morar em São Paulo, durante o tempo em que fiz a Poli, essas a senhora tá me devendo. Era terrível. Eu chegava três, quatro da manhã, entrava na pontinha dos pés pra não acordá-la. Quando ia fechar a porta do meu quarto ouvia aquele suspiro profundo vindo de seu quarto. Aquilo rasgava o coração.
Descontei quando saí de casa. Final da Poli, resolvi morar sozinho. Afinal, já era um velho de quase vinte e dois longos anos. Lembra? mãe. Essa tenho certeza que a senhora lembra. Encostei o caminhão de mudança na porta de casa, os homens botaram minha cama e aquele sofá-cama vermelho (lembra?) em cima do dito cujo e tchau. Lá fui eu. Tão radical que nem quis lhe dar meu endereço novo.
Talvez tenha sido por isso que, alguns aninhos depois, quando fui morar num aparelho (lembra?, era como se chamavam as casas dos militantes clandestinos na época da barra pesada da repressão) e avisei a toda a família que não daria meu endereço a ninguém, porque era sigiloso, a senhora não quis saber: quis o endereço. E eu dei. Puta merda (desculpa aí, mãe), podia ter colocado a senhora numa tremenda fria.
Por falar nisso, e a época do presídio. Aí é claro que a senhora lembra, né não? Um ano e meio levando cigarro pra mim, a senhora, que considerava o tabaco um pecado. Pô mãe, fala sério, naquela fase a senhora se superou. Foi demais. Qualquer coisa que eu pudesse reclamar da senhora antes, morreu aí. A senhora foi foda (puta que pariu, desculpa).
Depois teve os netos. Aí eu retribui, certo? Cada neto. Caprichei, hein mãe. Concorda?
Porra (desculpa) já tá escurecendo Preciso ir. Um beijo, mãe.
Levantou, beijou a flor, inclinou-se e depositou-a no túmulo.
Depois, saiu caminhando, devagar.
O vigia tinha pressa.
O cemitério já ia fechar.


1 comentário:

kelly disse...

Demais!!!! Postei na minha pg do Face.....vl a pena repassar!!