sexta-feira, 8 de outubro de 2004

Era uma vez - XIV
O Coletivo



Já falei no nº XIII sobre a organização do corró (presos comuns). Ele se estruturava mais ou menos como as hordas primitivas. Um chefe por cela – o leão – e a autoridade da força.Entre os presos políticos imperava a democracia direta, mais ou menos à moda da Grécia clássica. Os cidadãos atenienses reuniam-se na ágora – praça de debates e decisões – e resolviam tudo diretamente, sem a intermediação de representantes do povo. Não havia vereadores, deputados e senadores, funções de um mundo mais moderno, pelas quais há indivíduos dispostos a vender a mãe. Na Torre, lugar do presídio no qual ficavam as presas políticas, a tranca era só à noite. Isso quer dizer: durante o dia as celas ficavam abertas e as detentas podiam circular à vontade por todas as celas e mesmo pelo pátio. Ou seja, podiam discutir interminavelmente e decidir reunidas em assembléia.Nos dois pavilhões masculinos não. Era tranca brava. A gente só saía pra banho de sol uma vez por semana. Certo que mais tarde isso melhorou e – se não me falha a memória – chegamos a ter penso que três banhos de sol por semana. Mas nem entre as celas podia-se circular. Era cada grupo em sua cela. Claro que de vez em quando, mediante pequena contribuição para os minguados rendimentos dos carcereiros, a gente conseguia passar de uma cela a outra. Isso era o máximo de mobilidade possível.Resumo: nada de ágora. A discussão era feita valendo-se da Tereza. E aí, desculpem, mas é necessária pequena digressão.Não sei se até hoje é assim, mas no meu tempo de cadeia havia o costume de atribuir-se nome de mulher a coisas as mais variadas (meu deus, como faz falta mulher. É premente projetá-las em tudo). Pra não esticar muito: a já mencionada Torre, por exemplo, era “dona Júlia”. Agora, termo universal mesmo (nas cadeias brasileiras, claro, claro) era a Tereza. A Tereza é um meio de comunicação via cordas. Quem nunca esteve preso duvido que consiga imaginar quanta coisa se transporta por cordas. Talvez possa dizer que a Tereza era a nossa Internet, ou mais. Pequeno exemplo: você quer mandar uma caneca de café quentinho pro amigo de uma cela que fica um pouco afastada da sua. Você pega sua cordinha (pode ser um barbante grosso. Todo preso que se preze tem a sua), amarra um pãozinho adormecido (duro) numa ponta e o atira pro seu amigo, que a essas alturas está com os dois braços esticados pra fora do guichê da porta da cela. Ele recebe a corda, e fica a segurá-la, firme. Na caneca, você já colocou o café (até uma altura que permita a inclinação da caneca durante o percurso – há ciência e arte nisso). Você, então, enfia a corda por dentro da alça da caneca. Daí pra frente, meu caro, é malabarismo. Mas não se preocupe. No presídio você tem todo o tempo do mundo pra treinar isso exaustivamente. Você suspende levemente a sua ponta da corda e lá vai a caneca. Deu pra entender? Treine em casa. Quem sabe na próxima ditadura que vier por aí você não vai precisar saber fazer isso.Pois bem. A democracia direta, nos pavilhões masculinos, era exercida graças à Tereza. Alguém tinha uma proposta? Jogava no papel e punha pra circular pela Tereza. As celas tinham de discutir a tal proposta e todos votavam. Os votos podiam ser acompanhados de justificativas de votos. Assim, quando a coisa chegava nas últimas celas já tinha virado um calhamaço. E dá-lhe discussão. Discutia-se de um tudo. Tive a felicidade de esquecer tudo sobre os variados temas propostos. Mas dou um exemplo fictício que nada fica a dever aos que realmente eram postos em circulação: alguém lembrava que alguns dias depois era dia do soldado. A ditadura, por ser militar, iria comemorar efusivamente a data. Proposta: ficar sem falar com os carcereiros durante o dia do soldado pra manifestar nosso repúdio. Tipo assim, sacou?As decisões eram tomadas por maioria simples. Eram as Decisões do Coletivo. Tem de ser tudo em maiúsculas porque era sagrado, o troço. Uma vez tomada a decisão (o resultado era comunicado por outra viagem da Tereza), todo mundo tinha de cumprir o decidido. E todo mundo cumpria. Mesmo achando ridículo.Aos poucos, foi tornando-se nítida uma divisão dos presos em dois grupos. Havia os que pretendiam prosseguir a revolução mesmo presos. Era o pessoal da ALN, o frei Betto (não digo “os dominicanos”, porque nitidamente os outros dois – o Fernando e o Ivo - estavam em outra, mas eram dominados pelo Betto. Ainda vou falar sobre isso outro dia. Pode crer), a Ala Vermelha e avulsos variados. E havia nós, a maioria do POC, os mineiros do MRM, os velhos do Partidão e outros avulsos, que pouco a pouco fomos aceitando, muito a contragosto, é verdade, que tínhamos sido derrotados de modo definitivo. Era preciso, a nosso ver, aproveitar o tempo de prisão (que ainda não sabíamos qual seria) para pensar, estudar, refletir. Pra isso você precisa de condições de vida minimamente decentes. Queríamos obter condições carcerárias melhores. Negociar com a repressão essas melhorias. O primeiro grupo não: queria piorar as condições carcerárias pra poder denunciá-las na imprensa de Paris (no Brasil, é óbvio, nem pensar). Me lembro de um dia em que escorreguei uma grana pro carcereiro e fui à cela do frei Betto, a convite dele (acho que ele queria sondar quem era aquele sujeitinho) e constatei que havia uma goteira no teto da cela. Ingenuamente propus: chama o carcereiro e manda arrumar isso. E ele: não! Deixa assim. O Evaristo Arns (era o arcebispo de São Paulo na época e fazia visitas ao presídio. Tinha o privilégio, não concedido a outros mortais, de ir até a cela dos dominicanos) vem aqui qualquer dia desses e vamos pedir que fotografem essa goteira pra mostrar as péssimas condições de vida nesta cadeia. Percebi que falávamos línguas diversas.E a vida seguiu seu curso. O coletivo, decididamente, era um saco. O objetivo maior da turma do botar-pra-quebrar era fazer greve de fome. Nunca vi ninguém gostar tanto de uma greve de fome. Qualquer coisa (o carcereiro tal olhou esquisito pro companheiro qual) era motivo pra proposta de greve de fome. Aos poucos, conversa daqui, conversa dali, fomos ganhando adeptos pra nossa idéia de um presídio mais ameno, no qual fosse possível produzir alguma coisa proveitosa. Principalmente a Ala Vermelha mostrou-se receptiva a esse nosso papo. E como eles eram muitos, a relação de forças no Coletivo foi sendo alterada gradativamente. “Eles” já não conseguiam aprovar todas as besteiras que propunham. E chegou o dia em que se divulgou (pela Tereza, é claro) que alguns companheiros seriam transferidos, que isso era uma ameaça, que esses companheiros poderiam simplesmente sumir etc etc. Proposta: greve de fome pra evitar a transferência dos companheiros. Tereza vai, Tereza vem, “eles” – pela primeira vez em votação importante – perderam. E perderam feio. Só o pessoalzinho da ALN e os dominicanos (mais uns trotskistas que tinham acabado de chegar no presídio e não estavam entendendo nada) votaram a favor. Todo o resto foi contra. A gente só não deu festa porque não tinha como. Foi lavada. Claro que não lembro dos números, mas foi algo tipo 70% a 30%. Ou mais. Pensamos: daqui pra frente, vamos fazer as coisas do jeito certo. Chega de presepada.Ledo engano. Os caras – pros quais o Coletivo sempre fora o deus – disseram que não aceitavam o resultado e iam partir pra greve de fome sozinhos. É claro que tinham como perspectiva constranger todo mundo a seguir com eles. Deram-se mal. Todo mundo ficou firme (não foram eles que sempre insistiram na predominância do Coletivo?). Eles foram transferidos de presídio. Claro que pouquíssimos dias depois abandonaram a tal greve de fome e voltaram a conviver conosco. Mas a maioria estava consolidada. Fizeram biquinho mas pararam de encher o saco.Agora, vamos ver como o inefável frei Betto fala disso em um de seus inolvidáveis livros:
Sexta-feira, 12 de maio de 1972
Hoje às zero horas, iniciamos greve de fome, contra o isolamento de companheiros que desde ontem começaram a ser transferidos para a Penitenciária Estadual. Desconfiamos que esta medida porá em risco a vida dos companheiros transferidos. As condições na Penitenciária são bem piores que as do presídio Tiradentes. Por que um “gueto” de presos políticos?Ontem nos deixaram Mané Cirilo, Celso Horta, Chico Gomes, Altino Dantas e Alberto Becker. Hoje de manhã seguiram Gilberto Beloque, Manuel Porfírio, Antônio Espinosa e Vicente, o espanhol.Participam da greve as celas 16, 17, 21, 19, 3 e 1. Alguns companheiros da cela 2 e 6 aderiram e foram transferidos para uma daquelas celas. Boa parte dos presos políticos também participa. O resto do pessoal tem outra maneira de pensar...
(Cartas da Prisão, Editora Civilização Brasileira, 1977, página 39. Sabe que agora que reparei que o meu exemplar é o número 5? Será que vendeu mais de meia dúzia?)
Esse último parágrafo é brilhante. Depois de enumerar pormenorizadamente as celas participantes da greve, acrescenta: "boa parte dos presos TAMBÉM participa." Pensa bem. O que significa isso? Se as celas tais e quais participam, como “boa parte” “também” participa? Mais: conta só quantos números faltam na enumeração do moço (as celas iam de Zero a 21). Precisa mais? E a decisão do Coletivo? Nem sequer é mencionada. E as reticências finais. Repare o nojo a escorrer delas. “O resto do pessoal”, queridinho, era a esmagadora maioria. Essa maneira de fazer política é preservada pelos freis bettos da vida que hoje estão aboletados no poder. É isso.

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