domingo, 24 de outubro de 2004

Era uma vez - XV
Dra. Marlene e a anestesia ideológica



Dia desses, Fidel Castro caiu e fraturou o joelho. Tudo bem. Fizeram-se todas as metáforas possíveis e imagináveis sobre o episódio. Tudo bem. É justo que o pessoal tire sua casquinha em cima do velho.
Mas o que me chamou a atenção foi que ele pediu pra ser operado sem anestesia geral, pra continuar a liderar o país durante a cirurgia. Tascaram-lhe uma ráqui. Adormece as partes inferiores do corpo, não a cabeça.
Tenho cá minhas dúvidas. Será que o cérebro é melhor que as pernas pra liderar Cuba? Pelé, por exemplo, é o que é por causa – fundamentalmente – das pernas. Cérebro decididamente não é seu forte.
Tudo isso me trouxe à lembrança a doutora Marlene.
Estava eu enfurnado no Presídio Tiradentes quando soube da novidade. Havia um consultório dentário no presídio. E havia uma militante da ALN, a doutora Marlene, que era cirurgiã dentista. Como um mais um costuma dar dois, conseguimos que a “companheira” pudesse utilizar o dito cujo consultório para tratar os dentes dos presos políticos.
Pra mim, isso vinha a calhar. Apesar de – como transmontano – ter dentes de aço (isso é figurado, calma), estava com um molar aberto desde antes da prisão. O danado já me incomodava havia tempos. Volta e meia, pra conseguir dormir, tinha de enfiar um comprimido tipo AAS no buraco que se formara no dente. Logo pensei: “Chegou minha hora. Vou arrumar esta porra”.
Entrei na lista de espera pra consulta. No dia marcado, lá estava eu. A doutora Marlene examinou a cratera do meu molar e disse que teria de fazer tratamento de canal. Beleza. Era tudo que eu queria. Agendamos o dia do início do tratamento. Agradeci e voltei a minha cela.
Conversa vai, conversa vem, soube que doutora Marlene tinha lá seus critérios, digamos assim, ideológicos. Pra ser direto: ela entendia que anestesia era coisa de frouxo. Revolucionário que era revolucionário tinha que fazer tratamento de canal sem anestesia.
Desmarquei meu retorno e esperei pacientemente a liberdade pra procurar um dentista não ideológico.
O Fidel, que é o Fidel, aceitou a ráqui. Acho que ele devia ter feito a cirurgia no joelho sem anestesia nenhuma. Será que ele está a perder o fervor ideológico?

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá Passos! Do seu texto me cabe lhe dizer que, não teria Fidel ficado com medo de que lhe aplicassem tal anestesia médica suficiente para que lhe devolvessem em curto tempo o que ele mesmo fez no passado? Hum...

Luccks (luccks.com)

Softy Susana disse...

Fascinantes, as suas histórias. É a grande vantagem de se andar "por cá", nesta vida, há algum tempo. Só por isso, quero crescer! :)
beijinhos,

saltapocinhas disse...

É mesmo verdade que estiveste preso?? Conta mais, vá lá!