Não quis colocar aqui essa história
antes das eleições brasileiras porque iriam pensar que eu estava a
criticar Chico por ele ser cabo eleitoral da Dilma. É verdade que o
clima continua o mesmo em terras tupiniquins. Mas como agora Inês já
é morta, vamos aos factos.
Antes de mais, deixo claro que distingo
autor e obra. É que gosto muito das canções compostas por Chico.
Quanto ao próprio, comentei uma vez, em um texto, o facto de ele ter
furtado carros quando jovem, junto com amigos que queriam
divertir-se. Fui admoestado por atentos defensores de tudo que diz
respeito à Esquerda. “Cuidado com a reputação das pessoas!”,
diziam. Como se tais estrepolias não fossem de domínio público.
Li recentemente o livro Solo, de
memórias de Cesar Camargo Mariano. Dele consta um episódio
protagonizado por Chico. Raras são as críticas que Cesar Mariano
faz a alguém em seu livro. E este episódio não se inclui entre
elas. Ao contrário, ele o conta por considerá-lo um facto
engraçado.
É verdade que até velório tem piada.
Mas reproduzo aqui o relato de Cesar Mariano para salientar uma
faceta do caráter de Chico Buarque.
Avaliações, é claro, são do leitor.
“Roberto [Colossi, empresário de
Simonal e do SOM 3] tinha ido à Itália para administrar a produção
de alguns shows do Chico com o Toquinho. Ele sabia que nós
estaríamos viajando naquele período, mas jamais imaginamos nos
encontrar em Roma, do jeito que foi, na rua.
Depois de rirmos muito com aquela
coincidência, Chico nos convenceu, Simonal e eu, de que tínhamos de
mudar para o hotel onde eles estavam.
- Por quê, Chico?
- É que tenho alguns planos.
Mudamos para o hotel onde os quatro
estavam hospedados e começamos a execução do plano, depois de um
longo ensaio, naquela mesma madrugada.
Passava da meia-noite, e Chico achou
que estava na hora de começar. Cada um foi para o seu quarto.
Colossi, Marieta e eu nos posicionamos, cada um à frente de seu
próprio quarto, com a porta aberta. Nossa tarefa era de apoio.
Tínhamos de vigiar.
O hotel inteiro, a essa altura, dormia.
Silêncio total.
Pé ante pé, saíram de seus quartos
Chico, Toquinho e Simonal, nus, somente com uma toalha amarrada na
cintura, e começaram a recolher os pares de sapatos deixados do lado
de fora de cada quarto, para serem engraxados. Trocaram os sapatos do
nosso andar inteiro, inclusive os nossos. O par que fosse do quarto
23, por exemplo, ia para o 32, do andar de cima; o do 32 ia para o
16, no andar abaixo do nosso. Além disso, eles separavam os pares: o
direito subia, e o esquerdo ficava ou descia. Os avisos de “não
perturbe” eram trocados por “despertar às 3h...”, e os pedidos
de café da manhã eram preenchidos com os cardápios mais loucos.
(…)
Tudo tinha de ser muito rápido,
porque, às 4h da manhã, começava um verdadeiro pandemônio naquele
hotel. Todos gritando, brigando... E nós também, no meio deles. A
cena era indescritível.
Porém, no terceiro dia de ação,
ouvimos a campainha do elevador, que era exatamente em frente ao
quarto do Colossi e do meu, bem na hora em que os três estavam
executando a tarefa no nosso próprio andar. Nus. Era um garçom do
hotel. Não houve a menor chance de avisá-los. Foi muito rápido.
Foi muito rápida também a nossa saída
do hotel, naquela mesma manhã, a convite da gerência e da polícia.
Dias depois daquela missão naquele
hotel chiquérrimo de Roma (…) retornamos ao Brasil. “
(Solo - memórias, Cesar Camargo
Mariano, pág. 182 a 184)