Tento fazer, aqui, um resumo de uma
conferência proferida por Rudolf Steiner em 11 de Novembro de 1.904,
em Berlim. Valho-me da tradução brasileira de Paula Bennink,
publicada pela Editora Antroposófica em 2.012, sob o título “O
Maniqueísmo – A genuína missão do Bem e do Mal no contexto
evolutivo da humanidade”. Essa publicação traz, além do texto
da conferência, uma excelente Introdução da dra. Sonia Setzer.
O maniqueísmo surge no século III, na
Pérsia, fundado por Mani (216 – 276). Reunia elementos do
zoroastrismo, do hinduísmo, do budismo, do judaísmo e do
cristianismo. É, por isso, considerado um sincretismo religioso.
Espalhou-se logo por boa parte do mundo conhecido.
No século IV foi considerado uma
heresia por Santo Agostinho e pela Igreja Católica (ICAR).
Como em muitos outros casos, foi
duramente perseguido pela ICAR e seus seguidores foram completamente
eliminados no Ocidente no século VI. A ICAR tentou destruir os
escritos maniqueus e no mundo ocidental apenas ficou uma concepção
deturpada de seus conceitos.
Um parêntese: outro caso digno de nota
em relação a esse tratamento dado pela ICAR a seus opositores é o
de Celso. Esse filósofo pagão (século II) produziu uma crítica ao
cristianismo sob o título de “O Discurso Verdadeiro”. A ICAR
conseguiu sumir com todos os exemplares da obra de Celso. Contudo,
Orígenes, em seu afã de defender o cristianismo, escreveu, já em
meados do século III, a obra Contra Celso, que até hoje perdura e
da qual há tradução em Português. Adotou ele o método de
reproduzir quase que página por página a obra de Celso para melhor
refutá-la. Com isso, temos hoje acesso a essa obra... Ironias. Fecha
parêntese.
Durante o século XX foram encontrados
diversos textos maniqueus. Aquando da conferência aqui tratada,
Steiner talvez já tivesse conhecimento dos primeiros achados.
“Normalmente, o que se conhece da
doutrina maniqueísta é que ela se diferencia do cristianismo
ocidental por sua diferente concepção do Mal. […] o maniqueísmo
ensina que o Mal é tão eterno quanto o Bem; que não há
ressurreição do corpo, e que o Mal, como tal, não terá fim.
Portanto, ele não tem começo, e sim a mesma origem do Bem, e nem
tampouco terá fim” (pág. 22).
Isso parece a quem vem a conhecer o
maniqueísmo dessa maneira algo radicalmente anticristão e
totalmente incompreensível. Mas vamos examinar isso de acordo com as
tradições que devem provir do próprio Mani e verificar do que se
trata efetivamente.
Comecemos pela Lenda do Templo, uma
grande lenda cósmica do maniqueísmo:
“Certa vez os espíritos das Trevas
queriam atacar o Reino da Luz. Eles chegaram, de fato, até as
fronteiras do Reino da Luz e quiseram conquistá-lo. Entretanto, nada
conseguiram fazer contra o Reino da luz. Deveriam então – e aqui
existe um traço especialmente marcante, para o qual peço sua
atenção – ser castigados pelo Reino da Luz. Contudo, no Reino da
Luz não havia nenhum Mal, só o Bem. Portanto, os demônios das
Trevas só poderiam ser castigados com algo de bom. O que aconteceu
então? Aconteceu o seguinte: os espíritos do Reino da Luz tomaram
uma parte de seu próprio reino e o misturaram com o reino material
das Trevas. Essa mistura de uma parte do Reino da Luz com o Reino das
Trevas fez surgir um elemento fermentativo, que transformou o Reino
das Trevas num rodopio caótico. Esse fato trouxe um novo elemento: a
morte. Assim, esse reino vem-se autoconsumindo continuamente,
trazendo em si o germe de sua própria destruição. Conta-se também
que a espécie humana surgiu pelo fato de isso ter acontecido. O
homem primordial seria justamente aquilo que havia sido enviado pelo
Reino da Luz para misturar-se ao Reino das Trevas e superar, por meio
da morte, o que não deveria existir no Reino das Trevas – ou seja,
superá-lo em si mesmo.” (pág. 23).
“O profundo pensamento aí implícito
é que o Reino das Trevas deve ser superado pelo Reino da Luz por
meio da brandura, e não pelo castigo; não contrariando o Mal, mas
misturando-se a ele, para redimir o Mal como tal.” (pág. 23).
Daí a concepção teosófica do Mal:
[nessa altura Steiner ainda não
fundara a Sociedade Antroposófica e era secretário-geral da seção
alemã da Sociedade Teosófica]
O Mal não é nada mais do que um Bem
no momento errado.
Se as forças condutoras de uma
determinada época se imiscuíssem por mais tempo na evolução,
“naquele instante elas representariam o Mal no desenvolvimento
terreno. Assim, o Mal não é outra coisa senão o Divino, pois em
outros tempos a expressão da perfeição e do Divino era aquilo que
agora, no presente, é o Mal.” (pág. 25).
É assim que se deve entender a ideia
de Mal em Mani.
Também é preciso entender por que
Mani se intitulava “filho da viúva”.
O que é que se passou no atual estágio
evolutivo da humanidade?
Nos estágios anteriores a maneira como
a humanidade adquiria conhecimentos era outra. No estágio atual (a
quinta raça-raiz), a condução da alma, que era até então
realizada do alto, “se retraiu pouco a pouco, deixando a humanidade
seguir seu próprio caminho para tornar-se seu próprio guia.”
(pág. 26).
A alma passou a ser chamada “mãe”
em todas as linhas esotéricas. O orientador, o “pai”.
O orientador, Osíris, aquele que
representa a parte imediatamente divina, é o Pai.
A alma, Ísis, que concebe e recebe o
Divino-espiritual é a Mãe.
No atual estágio evolutivo o Pai passa
a se retrair. “A alma se torna viúva – precisa tornar-se viúva.
A humanidade é deixada por conta própria.” (pág. 26).
Essa alma é chamada de “viúva”
por Mani. E ele se considera “filho da viúva”.
Daí as palavras de Mani: “Deveis
desfazer-se de tudo o que vos é trazido pela autoridade externa;
depois tereis de amadurecer a fim de olhar para a própria alma.”
(pág. 27).
Agostinho não concorda com isso: “Eu
não aceitaria os ensinamentos de Cristo caso estes não se baseassem
na autoridade da Igreja”. (pág. 27)
Como se dá a atuação conjunta de Bem
e Mal?
Explica-se pela sintonia entre vida e
forma.
Como a vida chega à forma?
Por não se expressar de uma só vez,
numa única figura.
“Observem como a vida numa planta –
digamos, no lírio – passa de uma forma a outra. A vida do lírio
construiu, aperfeiçoou uma forma de lírio.
Quando essa forma está aperfeiçoada,
a vida a supera e passa ao germe, para mais tarde renascer em nova
forma, como a mesma vida. E assim a vida caminha de forma em forma. A
vida em si não possui forma alguma, e não poderia levar uma vida
própria de maneira perceptível” (pág. 28).
“A vida, enquanto forma, é sempre
revestida pela vida de uma época anterior. Vejamos, por exemplo, a
Igreja Católica. A vida que se desenrolou na Igreja Católica desde
Agostinho até o século XV era uma vida cristã. A vida, naquele
contexto, é o cristianismo. […] A forma – de onde vem a forma?
Ela não é outra coisa senão a vida do velho Império Romano.
Aquilo que ainda era vida nesse antigo Império Romano petrificou-se
em forma. O que antes era república, depois império – tudo o que
ali viveu, em suas manifestações exteriores, como Estado Romano –
legou sua vida, enrijecida em forma, ao cristianismo posterior até
na capital, Roma, que era antigamente a capital do Império Romano
Universal. Até os prefeitos romanos tiveram sua continuidade nos
presbíteros e bispos. O que antigamente era vida tornou-se mais
tarde forma, para um patamar superior da vida.” (pág. 29).
“A vida de uma época anterior sempre
se torna a forma de uma época posterior. Na consonância entre vida
e forma surgiu ao mesmo tempo o outro problema: o do Bem e do Mal –
pelo fato de o Bem de uma época anterior ter-se associado ao Bem de
uma nova época. Basicamente, isso nada mais é do que a consonância
entre o progresso e sua própria inibição. É também a
possibilidade da manifestação material, a possibilidade de vir à
existência exterior. Esta é nossa presença humana no âmbito da
Terra sólido-mineral: a vida interior e a vida retardatária de
tempos passados petrificada numa forma inibitória. Esta é também
a doutrina do maniqueísmo sobre o Mal.” (pág. 30).
No final da conferência, Steiner
aborda a criação de uma forma para a vida do próximo estágio
evolutivo da humanidade (a sexta raça-raiz), ainda valendo-se das
ideias de Mani.
Mas como penso ter ficado clara a
conceituação do Bem e do Mal no âmbito da Antroposofia, fiquemos
por aqui, que este texto já está longo demais.