quarta-feira, 16 de julho de 2014

O Bem e o Mal na Antroposofia


Tento fazer, aqui, um resumo de uma conferência proferida por Rudolf Steiner em 11 de Novembro de 1.904, em Berlim. Valho-me da tradução brasileira de Paula Bennink, publicada pela Editora Antroposófica em 2.012, sob o título “O Maniqueísmo – A genuína missão do Bem e do Mal no contexto evolutivo da humanidade”. Essa publicação traz, além do texto da conferência, uma excelente Introdução da dra. Sonia Setzer.

O maniqueísmo surge no século III, na Pérsia, fundado por Mani (216 – 276). Reunia elementos do zoroastrismo, do hinduísmo, do budismo, do judaísmo e do cristianismo. É, por isso, considerado um sincretismo religioso. Espalhou-se logo por boa parte do mundo conhecido.
No século IV foi considerado uma heresia por Santo Agostinho e pela Igreja Católica (ICAR).
Como em muitos outros casos, foi duramente perseguido pela ICAR e seus seguidores foram completamente eliminados no Ocidente no século VI. A ICAR tentou destruir os escritos maniqueus e no mundo ocidental apenas ficou uma concepção deturpada de seus conceitos.

Um parêntese: outro caso digno de nota em relação a esse tratamento dado pela ICAR a seus opositores é o de Celso. Esse filósofo pagão (século II) produziu uma crítica ao cristianismo sob o título de “O Discurso Verdadeiro”. A ICAR conseguiu sumir com todos os exemplares da obra de Celso. Contudo, Orígenes, em seu afã de defender o cristianismo, escreveu, já em meados do século III, a obra Contra Celso, que até hoje perdura e da qual há tradução em Português. Adotou ele o método de reproduzir quase que página por página a obra de Celso para melhor refutá-la. Com isso, temos hoje acesso a essa obra... Ironias. Fecha parêntese.

Durante o século XX foram encontrados diversos textos maniqueus. Aquando da conferência aqui tratada, Steiner talvez já tivesse conhecimento dos primeiros achados.

“Normalmente, o que se conhece da doutrina maniqueísta é que ela se diferencia do cristianismo ocidental por sua diferente concepção do Mal. […] o maniqueísmo ensina que o Mal é tão eterno quanto o Bem; que não há ressurreição do corpo, e que o Mal, como tal, não terá fim. Portanto, ele não tem começo, e sim a mesma origem do Bem, e nem tampouco terá fim” (pág. 22).

Isso parece a quem vem a conhecer o maniqueísmo dessa maneira algo radicalmente anticristão e totalmente incompreensível. Mas vamos examinar isso de acordo com as tradições que devem provir do próprio Mani e verificar do que se trata efetivamente.

Comecemos pela Lenda do Templo, uma grande lenda cósmica do maniqueísmo:
“Certa vez os espíritos das Trevas queriam atacar o Reino da Luz. Eles chegaram, de fato, até as fronteiras do Reino da Luz e quiseram conquistá-lo. Entretanto, nada conseguiram fazer contra o Reino da luz. Deveriam então – e aqui existe um traço especialmente marcante, para o qual peço sua atenção – ser castigados pelo Reino da Luz. Contudo, no Reino da Luz não havia nenhum Mal, só o Bem. Portanto, os demônios das Trevas só poderiam ser castigados com algo de bom. O que aconteceu então? Aconteceu o seguinte: os espíritos do Reino da Luz tomaram uma parte de seu próprio reino e o misturaram com o reino material das Trevas. Essa mistura de uma parte do Reino da Luz com o Reino das Trevas fez surgir um elemento fermentativo, que transformou o Reino das Trevas num rodopio caótico. Esse fato trouxe um novo elemento: a morte. Assim, esse reino vem-se autoconsumindo continuamente, trazendo em si o germe de sua própria destruição. Conta-se também que a espécie humana surgiu pelo fato de isso ter acontecido. O homem primordial seria justamente aquilo que havia sido enviado pelo Reino da Luz para misturar-se ao Reino das Trevas e superar, por meio da morte, o que não deveria existir no Reino das Trevas – ou seja, superá-lo em si mesmo.” (pág. 23).

“O profundo pensamento aí implícito é que o Reino das Trevas deve ser superado pelo Reino da Luz por meio da brandura, e não pelo castigo; não contrariando o Mal, mas misturando-se a ele, para redimir o Mal como tal.” (pág. 23).

Daí a concepção teosófica do Mal:
[nessa altura Steiner ainda não fundara a Sociedade Antroposófica e era secretário-geral da seção alemã da Sociedade Teosófica]
O Mal não é nada mais do que um Bem no momento errado.

Se as forças condutoras de uma determinada época se imiscuíssem por mais tempo na evolução, “naquele instante elas representariam o Mal no desenvolvimento terreno. Assim, o Mal não é outra coisa senão o Divino, pois em outros tempos a expressão da perfeição e do Divino era aquilo que agora, no presente, é o Mal.” (pág. 25).

É assim que se deve entender a ideia de Mal em Mani.

Também é preciso entender por que Mani se intitulava “filho da viúva”.
O que é que se passou no atual estágio evolutivo da humanidade?
Nos estágios anteriores a maneira como a humanidade adquiria conhecimentos era outra. No estágio atual (a quinta raça-raiz), a condução da alma, que era até então realizada do alto, “se retraiu pouco a pouco, deixando a humanidade seguir seu próprio caminho para tornar-se seu próprio guia.” (pág. 26).
A alma passou a ser chamada “mãe” em todas as linhas esotéricas. O orientador, o “pai”.
O orientador, Osíris, aquele que representa a parte imediatamente divina, é o Pai.
A alma, Ísis, que concebe e recebe o Divino-espiritual é a Mãe.
No atual estágio evolutivo o Pai passa a se retrair. “A alma se torna viúva – precisa tornar-se viúva. A humanidade é deixada por conta própria.” (pág. 26).
Essa alma é chamada de “viúva” por Mani. E ele se considera “filho da viúva”.
Daí as palavras de Mani: “Deveis desfazer-se de tudo o que vos é trazido pela autoridade externa; depois tereis de amadurecer a fim de olhar para a própria alma.” (pág. 27).

Agostinho não concorda com isso: “Eu não aceitaria os ensinamentos de Cristo caso estes não se baseassem na autoridade da Igreja”. (pág. 27)

Como se dá a atuação conjunta de Bem e Mal?
Explica-se pela sintonia entre vida e forma.
Como a vida chega à forma?
Por não se expressar de uma só vez, numa única figura.
“Observem como a vida numa planta – digamos, no lírio – passa de uma forma a outra. A vida do lírio construiu, aperfeiçoou uma forma de lírio.
Quando essa forma está aperfeiçoada, a vida a supera e passa ao germe, para mais tarde renascer em nova forma, como a mesma vida. E assim a vida caminha de forma em forma. A vida em si não possui forma alguma, e não poderia levar uma vida própria de maneira perceptível” (pág. 28).
“A vida, enquanto forma, é sempre revestida pela vida de uma época anterior. Vejamos, por exemplo, a Igreja Católica. A vida que se desenrolou na Igreja Católica desde Agostinho até o século XV era uma vida cristã. A vida, naquele contexto, é o cristianismo. […] A forma – de onde vem a forma? Ela não é outra coisa senão a vida do velho Império Romano. Aquilo que ainda era vida nesse antigo Império Romano petrificou-se em forma. O que antes era república, depois império – tudo o que ali viveu, em suas manifestações exteriores, como Estado Romano – legou sua vida, enrijecida em forma, ao cristianismo posterior até na capital, Roma, que era antigamente a capital do Império Romano Universal. Até os prefeitos romanos tiveram sua continuidade nos presbíteros e bispos. O que antigamente era vida tornou-se mais tarde forma, para um patamar superior da vida.” (pág. 29).

“A vida de uma época anterior sempre se torna a forma de uma época posterior. Na consonância entre vida e forma surgiu ao mesmo tempo o outro problema: o do Bem e do Mal – pelo fato de o Bem de uma época anterior ter-se associado ao Bem de uma nova época. Basicamente, isso nada mais é do que a consonância entre o progresso e sua própria inibição. É também a possibilidade da manifestação material, a possibilidade de vir à existência exterior. Esta é nossa presença humana no âmbito da Terra sólido-mineral: a vida interior e a vida retardatária de tempos passados petrificada numa forma inibitória. Esta é também a doutrina do maniqueísmo sobre o Mal.” (pág. 30).

No final da conferência, Steiner aborda a criação de uma forma para a vida do próximo estágio evolutivo da humanidade (a sexta raça-raiz), ainda valendo-se das ideias de Mani.

Mas como penso ter ficado clara a conceituação do Bem e do Mal no âmbito da Antroposofia, fiquemos por aqui, que este texto já está longo demais.

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