segunda-feira, 7 de fevereiro de 2005
Bela viola, pão bolorento
Esse tempo é danado. Bicho não pára. Não tem marcha a ré. Vai em frente. As pessoas mudam, as cidades mudam, os costumes, os pecados, tudo muda. Muda porque o tempo passa. Queria, pelo menos, umas alternâncias no ritmo, na velocidade. Até dá essa impressão, às vezes. Mas é só impressão. Desejo, talvez.
Minha mãe dizia (tá vendo só: não fosse o tempo, ela continuaria a dizer):
Por fora bela viola,
por dentro, pão bolorento
Era a denúncia das aparências. Do movimento. Do tempo.
Se tudo ficasse imóvel, se tudo parasse, daria pra apreciar, olhar em detalhe. Ver a essência.
Mas a areia escapa por entre os dedos. Tempo vingativo, esse. Que se move e remove tudo. Empurra tudo para o nada.
Minha mãe, sempre ela, diria pro tempo:
Deixa estar, jacaré, que a lagoa há de secar.
Era o jeito dela de dizer que a justiça seria feita. Que a ingratidão teria troco.
Hoje converso com meus amigos de décadas de convívio. Conversamos como se ainda tivéssemos vinte anos. Iludimos o fluir do tempo. Mas isso é precário.
Minha mãe, por exemplo, já não fala mais. Converso com ela, tentativa de enganar o devir. Afinal, dia desses foi seu aniversário de 92 anos. Aniversário coisa nenhuma. Ela já se foi, levando aniversários e comemorações, conversas, discussões, reconciliações. Tudo.
Ninguém se ilude. Não me iludo. Apenas me distraio.
Enquanto o tempo se esvai.
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