sexta-feira, 18 de fevereiro de 2005

Era uma vez - XVII
Liberdade e Imaginação


Talvez os dias mais impregnados de mixed feelings, na cadeia, fossem aqueles em que um companheiro de cela era solto.
Tudo começava pela manhã. Um carcereiro chegava junto ao guichê da porta da cela e gritava o nome de alguém. Suspense. Podia ser coisa boa ou coisa ruim. Podia ser aviso pra ir depor na Auditoria Militar, por exemplo. Isso era bom. Significava que algum processo estava andando. Mas podia ser ordem pra arrumar as coisas e ir para o DOPS ou pra OBAN. Talvez alguém tivesse sido preso e falado algo novo, que envolvesse o preso. Era pau à vista.
A suprema felicidade, contudo, era quando o carcereiro anunciava que o nomeado seria solto naquele dia.
Parava tudo na cela. A excitação de todos subia a níveis incríveis. Adrenalina pura. Primeiro, os gritos, os abraços, o choro de alegria. Aos poucos, enquanto o felizardo começava a arrumar suas tralhas pra cair fora, começava a baixar sobre nossas cabeças uma sensação de tristeza, tristeza que ia aumentando devagar, convivendo com a alegria pela sorte do companheiro daquela maneira como água e óleo compartilham um recipiente.
A partir daí, o comportamento de cada um variava conforme o estilo individual: uns escapavam pra dentro do mocó, fechavam a 'cortina' e ficavam enfurnados em silêncio cheio de significados. Outros se atiravam a uma tarefa qualquer – como lavar louça, por exemplo – pra tentar afastar aquela confusão de sentimentos.
Mesquita e eu, que convivemos na mesma cela quase um ano, antes de brigarmos por motivos pra lá de fúteis, tínhamos nossa estratégia de lidar com a situação: passávamos a tentar convencer o futuro homem livre de que sua liberdade lhe seria de pouquíssima utilidade.
- Não adianta ser livre se você não tem imaginação, cara.
- Que é que você vai fazer lá fora? O mesmo que fazia aqui?
- Troca com a gente. Você fica aqui e a gente sai. A gente promete fazer coisas incríveis no seu lugar.
- Deus dá nozes a quem não tem dentes.
E íamos por aí afora, azucrinando a vida do coitado.
Claro que os coitados éramos nós. E todos sabiam disso.
Depois que o companheiro saía, depois das terríveis despedidas (que doíam como facadas), enquanto uma enorme nuvem de desalento descia do céu engordurado da cela, repetíamos um para o outro, durante intermináveis horas:
- Ah, se fosse eu. Quanta coisa pra fazer lá fora.
- Ele não vai saber usufruir de toda essa liberdade.
- Tadinho. Não tem a mínima imaginação.

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