sábado, 28 de agosto de 2004

Era uma vez - X
Esquerda revolucionária e homossexualidade



Quando cheguei ao Presídio Tiradentes, as idéias e práticas dominantes eram as impostas pelo pessoal da ALN, com a benção de Frei Betto. Ainda vou falar muito a respeito disso, aqui. Por hora, quero ficar no terreno do moralismo então reinante naqueles pavilhões. Havia gente que não se permitia nem um palavrão, nem um puta-que-pariuzinho. Quanto à sexualidade, então, era uma coisa antediluviana.
E foi nesse contexto que o Sena chegou para confundir.
É preciso dizer que tão grande quanto o anacronismo em questões de sexualidade, era o maniqueísmo de nossa esquerda revolucionária em relação ao comportamento sob tortura. A coisa toda era de um ridículo atroz: todos tinham sido presos porque – evidentemente – todos foram “abrindo” informações sob tortura e permitindo, com isso, a prisão de outros. Mas era preciso manter o mito do heroísmo, do estoicismo. Pra ser direto: era preciso insistir naquela enganação. Parar pra pensar era incompatível com levar adiante a revolução. Os presos eram, então, “classificados” de acordo com seu presumível comportamento-no-pau (sob tortura). Aqueles sobre os quais pairava a aura de terem resistido bravamente às torturas eram tidos como revolucionários de primeira linha.
E foi aí que o Sena fundiu a cuca dos bravos moços do Fundão (celas da parte final do corredor do pavilhão 2, tidas como propriedade da turma da ALN e que nós "invadimos" sem saber que se tratava de propriedade privada). Todos aceitavam que seu comportamento sob tortura tinha sido irrepreensível. E o cara proclamava aos quatro ventos a sua bissexualidade.
Como era possível? Um viado herói?
O mesmo acontecia com o Chaim, ainda que este fosse um pouco mais retraído e não tão provocativo quanto o Sena.
Mas ambos perturbavam a weltanschaung (visão-de-mundo) da turma da ALN. Não se encaixavam nos dogmas.
Nunca mais os encontrei, os mineirinhos Sena e Chaim. Mas lembrei deles outro dia, quando vi meu blog incluído nas indicações do que talvez seja o melhor blog homossexual existente em língua portuguesa, o renas e veados.
Beijinhos transmontanos pra vocês, onde quer que estejam. É esquisito ter saudade de presídio, mas às vezes tenho boas recordações dos tempos em que ficávamos horas junto aos guichês das portas de nossas celas separadas por um corredor, a bater longos papos em linguagem de cadeia (aquela conversa com as mãos na qual já não sou mais fluente).


Atualização (7/03/2.007): Reencontro o Chaim. Esse é, talvez, o maior mérito deste blog. Permitir reatar relações com pessoas das quais eu não tinha mais pistas. E ele me corrige. Não é Sena. É Sanna. Curioso: eu já havia me dado conta do erro. Pensava tê-lo corrigido. Mas não. Corrijo agora.

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