domingo, 22 de agosto de 2004

Era uma vez - VI
Zezinho



Fui preso em 28 de julho de 1.971. Pouco antes, em abril, minha mãe me deu a notícia: o Zezinho foi preso.
- Que Zezinho? O filho da dona Anatália?
- Sim, ele mesmo.
- Mas, o quê que ele aprontou?!
- Preso político. Foi por causa de política.
- O Zezinho?!
Minha surpresa tinha suas origens. Apesar de eu nunca ter convivido com ele (ele era alguns anos mais velho), Zezinho era conhecido de minha família desde seu nascimento. Sua mãe era fervorosa participante da 1ª Igreja Baptista de Santos. Tinha duas irmãs também membros da igreja. Certo que seu pai nunca foi chegado a muita religiosidade. Nem Zezinho, diga-se. Apesar dos cuidados de sua mãe, desde cedo foi atraído pela vida de costumes pouco ortodoxos de uma cidade-porto como Santos. Se é que me entendem. Lá aprendeu de tudo um pouco, de certo pouco muito, e não me refiro à física quântica, claro, claro.
Por tudo isso, não entendi por que cargas d’água Zezinho fora preso por razões políticas.
Pouco tempo depois, passada minha fase de Oban (22 dias), fui transferido para o Dops (Departamento de Ordem Política e Social). As celas eram estreitas e compridas. Um corredor central separava os beliches chumbados às paredes laterais das celas. Eram três ‘andares’. Ao fundo um pequeno banheiro (casa de banhos) e era tudo. Ah, uma pequena janela, dotada da indispensável grade, nos ligava a um estreito pátio no qual tomávamos esporádicos banhos de sol. Havia uma meia dúzia de celas. Fui parar na quarta ou quinta. Poucos dias depois de minha chegada, fiquei sabendo, já não sei como, que Zezinho era um dos ocupantes da cela número 1. E logo recebi o convite dele para mudar pra lá. Graças às artimanhas de Zezinho (que eu começava a conhecer de perto – tanto ele quanto seus ‘expedientes’), fui transferido logo.
No presídio Tiradentes, que eu iria conhecer um mês depois, o espaço privativo de cada um , a cama e seu entorno, conhecido como mocó, era personalizado no capricho. A começar do cobertor pendurado à guisa de cortina para proteger da luz da lâmpada que nunca podia ser apagada, as fotos das namoradas/mulheres/filhos/cachorros/papagaios pregadas na parede interna do mocó, pequenas estantes improvisadas no interior dos mesmos pra guardar uns poucos livros e cadernos etc etc. No Dops, como tudo era mais provisório, os mocós eram despojados, nus. Não o do Zezinho. No do Zezinho havia profusão de mulheres peladas em fotos coloridas que ele conseguia sabe-deus-e-o-carcereiro-como.
No Dops, além dos presos políticos, havia também os presos da Lei de Segurança Nacional. Quer dizer, juridicamente não era bem isso. Na verdade, a versão oficial era a de que não havia presos políticos no Brasil. Havia a Lei de Segurança Nacional (LSN) que havia sido elaborada exatamente para enquadrar os crimes políticos. Mas, como a coisa toda tinha de ser disfarçada, a tal lei acabava por enquadrar certos tipos que nada tinham a ver com política. Por exemplo, um indivíduo preso a portar uma arma privativa das forças armadas era enquadrado na LSN. Ia parar no Dops, nas ‘nossas’ celas. E era sempre a mesma ladainha: não sei de nada, não fiz nada, é tudo um grande equívoco etc etc.
Por isso, quando chegava um novo preso da LSN, Zezinho ia logo perguntando: Ô meu, de que inocência és culpado?

(continua qualquer dia desses)


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