quarta-feira, 11 de agosto de 2004

Era uma vez - V
O Recortado



Já disse: Altino Dantas antecipou que o Presídio Tiradentes era o céu. E era. A gente tinha fogão elétrico daqueles de duas bocas. Do pessoal da cela, sempre havia uns dois ou três cujas famílias podiam mandar alguma coisa. Então, a gente pedia cebola, alho, tomate, temperos variados (até noz moscada!) etc etc e fazia recortado.
Pra explicar o recortado tem que dar umas voltas.
A comida para os presos era feita no Carandiru, um complexo prisional enorme situado não muito longe do Tiradentes. Já foi desativado. Ficou internacionalmente famoso no governo Fleury, quando mataram 111 presos lá. O policial militar que comandou o massacre foi eleito deputado. O brasileiro é cordial. Aliás, é mesmo. Quando Sérgio Buarque de Holanda escreveu Raízes do Brasil ( que em muitas bibliotecas brasileiras é posto na prateleira de Botânica), ele caracterizou o brasileiro como cordial. Mas cordial, de coração. Ou seja, o brasileiro atua de acordo com o coração. Cordialmente. E – sempre segundo a maioria cordial – bandido bom é bandido morto.
Mas vamos voltar à comida que já estou com fome.
Do Carandiru, a comida era mandada ao Tiradentes em tonéis de latão (pra dizer a verdade, não sei qual a liga metálica da qual eram feitos aqueles cilindros que ficavam lá embaixo, no pátio, com seu conteúdo a servir de aperitivo aos gatos que neles subiam).
Chegada a hora do almoço, os carcereiros passavam pelas celas a distribuir aquela gororoba. Era uma massa amarela, a lembrar mandioquinha, batata, algo por aí. Boiando nessa massa, pedaços de carne, ou melhor, de sebo com pequenos adendos de carne.
Era a matéria prima do recortado.
Aceitávamos aquilo que nos oferecia o solícito carcereiro (‘solícito’ é elogio post mortem. Penso que a maioria já morreu, daí meu tratamento condescendente).
Em paralelo, já o encarregado-do-dia (havia um por dia em cada cela, responsável pela limpeza e pelas refeições) preparara os tomates, cebolas, alhos et caterva.
A gororoba recebida da ‘ala’ (corredor do pavilhão, não confundir com ‘Ala’, dissidência do PC do B) era posta em uma peneira, sobre a pia. Recebia água corrente. Sobravam, portanto, os pedaços de sebo com aderências de carnes. Tais pedaços eram, então, cortados em cima de uma tábua de carne. Retirado o sebo (e sabe-se lá mais o quê), sobravam porções não despiciendas de carne. Eis o recortado.
Refogávamos tais nacos de carne em uma frigideira, bem acompanhados pelos temperos adrede preparados (estou a tentar uma certa solenidade na linguagem para transmitir a sensação que nos invadia ao sentir o cheiro daquela iguaria).
Daí pra frente, era apenas
Bom Apetite!
Sem esquecer o arroz e o feijão que o ‘escravo’ do dia já aprontara.


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