sábado, 31 de julho de 2004

Era uma vez - II
A neblina se dissipa



Não me lembro se era manhã ou tarde. Era dia.
A porta da cela foi aberta e entrou um rapaz sorridente, simpático, comunicativo. Logo pensei: como alguém pode sorrir aqui?
Ele foi explicando: estava em trânsito para Brasília, ia prestar depoimento em um processo no qual estava envolvido. Vinha do presídio Tiradentes. Já estava preso havia alguns meses. Havia sido pego pelo pessoal do DOPS (Depto de Ordem Política e Social). Já estivera ali, na Oban (Operação Bandeirantes), algum tempo atrás. Dia seguinte já iria embora. Como respondia a vários processos em cidades diferentes – viajava não raro.
Naquele momento eu, que vivia aquele pesadelo sem noção do que aconteceria em seguida, sem mesmo saber se existiria um “em seguida”, sentindo em torno de mim uma espessa neblina que não me permitia enxergar nada, a não ser aquele lugar absurdo no qual militares e policiais se revezavam vinte e quatro horas por dia para torturar os presos e arrancar deles confissões, naquele momento, por causa daquela conversa, comecei a sentir que a neblina se dissipava, já dava pra ver um pouco mais longe. Se a visão não era reconfortante, pelo menos era melhor do que o nada anterior.
O rapaz apresentou-se: era Altino Dantas (hoje membro do PT, já foi vereador em Santos, vejam só). Disse que a Oban era o inferno. Mas, quando fôssemos para o DOPS, seria o purgatório. O Presídio Tiradentes era o céu. Ainda detalhou: quando você é preso pela Oban, não apanha no DOPS. E vice-versa.
Existia uma rivalidade entre os órgãos de repressão.
Irônico mas real.


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