domingo, 20 de junho de 2004

Necessidade e Virtude


Engraçado. Há coisas que por serem necessárias - mas penosas - precisam ser envoltas em aura de virtude. Pra ficarem mais palatáveis, menos assustadoras, incômodas.
Exemplo? Acordar cedo. A maioria das pessoas precisa acordar cedo. Diariamente. Surgiu, em função disso, a tese do 'Deus ajuda a quem cedo madruga'. Há, de um lado, a divinização do cedo-despertar. De outro, abomina-se a pessoa que acorda tarde. Tudo para tornar mais suportável a necessidade de acordar cedo. Agora, que há muita hipocrisia nisso, lá isso há. Já faz tempo que, volta e meia, faço um 'teste': como de vez em quando caio da cama cedo em domingos ensolarados (ou não), pego o telefone lá pelas oito horas e ligo pra algum madrugador conhecido. Nunca deu chabu. A pessoa - invariavelmente - atende com aquela inconfundível voz de sono profundo. E nega (!) que estivesse a dormir. Imagina! Acordei faz tempo!
Outro desses fenômenos de transformação de necessidade em virtude ocorre com a morte. Ela mesmo. Tudo indica que a gente vai morrer um dia. Está certo que não existe prova disso. Mas convenhamos, parece inevitável. Afinal, até hoje parece que as pessoas todas insistem em morrer. Por que escaparíamos? O fato é que - além de inevitável - a morte parece ser uma coisa muito chata. Quase todo mundo gostaria de adiá-la indefinidamente. Daí pra criar toda uma mitologia em torno da própria não dá nem um passo de distância. E tome vida eterna, anjinhos a voar com graciosidade, céus deslumbrantes e o diabo (ops!). Tudo isso pra tornar a perspectiva da morte algo mais digerível.
Tá bom, que seja. Cada um alivia suas dores como pode. Mas algumas coisas não encaixam bem. Exemplo? Enterro de crente. O pessoal fica dividido entre chorar e justificar porque está a chorar. Afinal, se morrer é passar desta pra outra muuuito melhor, pra que a choradeira? Ah! é saudade de quem se foi, dizem. Tá bom. Então vai junto! Qual o problema?
Que nada. Choram de saudade, louvam a maravilha que estará a viver o defunto, mas se agarram com unhas e dentes a esta vidinha vagabunda deste vale de lágrimas.
Li em lugar incerto, em tempo indeterminado, que existiu uma tribo primitiva qualquer na qual a família era enterrada com o patriarca falecido. Deixo aí a sugestão aos fiéis de todos os cultos.
Coerência gente. Coerência. Todos pra cova. E me deixem dormir.

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