Um aspecto importante da leitura da Bíblia é que na chamada “leitura devocional” não se dá a devida autonomia a cada um dos livros que compõem o livro sagrado.
O pesquisador Bart Ehrman, em seu livro “Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?” (tradução brasileira de Jesus, interrupted, 2009. No Brasil, publicado em 2010, Ediouro) faz uma comparação entre as narrativas da morte de Jesus em Marcos e em Lucas.
Belo exemplo de como as diferenças na narrativa podem ajudar a compreender a mensagem que cada autor quer passar ao leitor.
Vou tentar resumir a análise de Ehrman, que ocupa – na tradução brasileira – as páginas 79 a 86.
A morte de Jesus em Marcos:
“Na versão de Marcos para a história (Marcos 15:16-39) Jesus é condenado à morte por Pôncio Pilatos, escarnecido e agredido pelos soldados romanos e levado para ser crucificado. Simão Cirineu carrega sua cruz. Jesus não diz nada durante todo o caminho. Os soldados crucificam Jesus e ele ainda assim não diz nada. Os dois ladrões crucificados ao seu lado debocham dele. As pessoas que passam debocham dele. Os líderes judaicos debocham. Jesus fica em siêncio até o fim, quando solta o grito infeliz: 'Eloi, Eloi, lemá sabachtháni', que Marcos traduz do hebraico para seus leitores como: 'Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?' Alguém entrega a Jesus uma esponja com vinagre para beber. Ele dá o último suspiro e morre. Imediatamente acontecem duas coisas: a cortina do Templo se rasga ao meio e o centurião que observava reconhece: 'Verdadeiramente este homem era Filho de Deus'.”
“A questão é que Jesus foi rejeitado por todos: traído por um dos seus, negado três vezes por seu seguidor mais próximo, abandonado por todos os discípulos, rejeitado pelos líderes judaicos, condenado pelas autoridades romanas, escarnecido pelos sacerdotes, pelos passantes e até mesmo pelos dois outros crucificados ao seu lado. […] Ele morre em agonia, sem saber por que tem de morrer.”
“Mas o leitor sabe a razão. Logo após Jesus morrer, a cortina se rasga ao meio e o centurião faz sua confissão. A cortina rasgada ao meio mostra que, com a morte de Jesus, Deus está disponível para seu povo diretamente, e não por intermédio dos sacrifícios feitos pelos sacerdotes judaicos no Templo. A morte de Jesus é um resgate (ver Marcos 10:45). E alguém se dá conta disso imediatamente: não os seguidores mais próximos de Jesus ou os espectadores judeus, e sim o soldado pagão que acabou de crucificá-lo. A morte de Jesus leva à salvação, e são os gentios que vão reconhecer isso. Não é um relato desinteressado do que 'realmente' aconteceu quando Jesus morreu. É teologia em forma de narrativa.”
“[...] a versão de Marcos para a morte de Jesus é um modelo para compreender a perseguição aos cristãos.”
A morte de Jesus em Lucas:
“Em Lucas [Lucas 23:26-49], como em Marcos, Jesus é traído por Judas, negado por Pedro, rejeitado pelos líderes judeus e condenado por Pôncio Pilatos, mas não é escarnecido e agredido pelos soldados romanos. […] Em Lucas, Jesus é levado para ser executado, e Simão Cirineu é obrigado a carregar sua cruz. Mas Jesus não fica em silêncio enquanto segue para sua crucificação. No caminho, ele vê mulheres chorando pelo que acontece a ele, vira-se para elas e diz: 'Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas e por vossos filhos!' (Lucas 23:28) […] Jesus não parece abismado com o que lhe acontece. Está mais preocupado com aqueles ao seu redor do que com seu próprio destino.
Além disso, ele não fica em silêncio enquanto é pregado à cruz, como em Marcos. Em vez disso, ele faz uma prece: 'Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem' (Lucas 23:34). Jesus parece ter uma ligação direta com Deus, e está mais preocupado com as pessoas que estão fazendo aquilo com ele do que consigo mesmo. […] Jesus não está, de modo algum, confuso com o que ou por que isso acontece a ele. Está completamente calmo e no controle da situação; […]
A escuridão toma a Terra, e a cortina do Templo é rasgada enquanto Jesus ainda está vivo, em contraste com Marcos. Aqui a cortina rasgada não indica que a morte de Jesus traz a salvação – já que ele ainda não morreu. Em vez disso, mostra que sua morte é 'a hora das trevas', como diz antes no Evangelho (22:53), e simboliza o julgamento do povo judeu por Deus. [...]
Mais importante que tudo: em vez de ao fim dar um grito, exprimindo sua sensação de absoluto abandono ('Por que me abandonaste?'), em Lucas, Jesus reza a Deus em voz alta, dizendo: 'Pai, em tuas mãos entrego meu espírito'. Então dá o último suspiro e morre (23:46). […]
Qual teria sido o objetivo de Lucas ao modificar o relato de Marcos, de modo que Jesus não morresse mais em agonia e desespero. […]
Lucas estaria mostrando aos cristãos um modelo para seu sofrimento – como Jesus, o mártir perfeito que segue para a morte confiante em sua própria inocência, seguro da presença palpável de Deus em sua vida, calmo e no controle da situação, sabendo que o sofrimento é necessário para ter a recompensa do Paraíso e que tudo logo estará terminado, dando lugar a uma existência abençoada na vida a seguir. “
Conclusão:
Essa leitura “horizontal” dos Evangelhos, ao invés da leitura contínua ("vertical"), com a comparação das narrativas dos diversos evangelistas para um mesmo episódio, permite uma compreensão melhor da mensagem de cada um dos autores.
“O problema é quando os leitores tomam esses dois relatos e os combinam em uma narrativa abrangente, na qual Jesus diz, faz e experimenta tudo o que é dito nos dois Evangelhos. Quando isso é feito, as mensagens de Marcos e Lucas se perdem completamente e são abafadas.Jesus já não está mais em profunda agonia, como em Marcos (posto que ele é confiante, como em Lucas), e já não está calmo e no controle, como em Lucas (uma vez que ele está desesperado, como em Marcos). […]
Quando, então, os leitores acrescentam Mateus e João à mistura conseguem um retrato de Jesus ainda mais confuso e combinado, imaginando equivocadamente terem reconstruído os acontecimentos como eles realmente se deram. Lidar dessa forma com as histórias é roubar de cada autor sua própria integridade e privá-lo do significado que ele transmite em sua história.”
Enfim: um estudo comparativo (“horizontal”) de textos que narram os mesmos episódios, pode ser mais frutífero que uma simples leitura contínua (“vertical”) da Bíblia.