quinta-feira, 14 de julho de 2005

Era uma vez - XXV
Começo de vida no Presídio Tiradentes


O pavilhão 2 do Presídio Tiradentes tinha dois andares. No térreo ficavam os presos correcionais (corró) e as ratazanas. Depois da transferência do corró sobraram só os ratos. No segundo andar ficavam os presos políticos (a rigor, os presos incursos na Lei de Segurança Nacional. Isso incluía uns poucos indivíduos presos por motivos não políticos, por exemplo, porte de arma privativa das Forças Armadas).
O segundo andar consistia em um largo corredor (a “Ala”) com as celas ímpares de um lado, as pares do outro. A ala não era visível do início ao fim. Havia duas paredes que a dividiam em três partes. Claro, essas paredes tinham portas que permitiam a circulação por toda a ala. Porta de saída, mesmo, só na extremidade inicial da ala.
Talvez porque o forte de quem organizou o presídio não fosse a matemática, a cela zero ficava do lado das celas ímpares. Exatamente por esse detalhe, acho contraditória a existência de uma cela zero. Isso de começar a contar de zero, isso sim, é coisa de matemático. Sabe-se lá.
O facto é que a cela zero era grandona. Nela cabiam dezenas de presos, acomodados em beliches. Depois da saída do corró, quando conseguimos melhorias em nossa situação carcerária, uma dessas melhorias foi a transformação da cela zero em cela de artesanato. Nela, fazíamos trabalhos em couro com a técnica de batique
Quando cheguei ao Presídio Tiradentes, a norma era todo mundo recém-chegado ser levado para morar na cela zero (demorei pra me acostumar com essa história de dizer "moro na cela tal". Mas a gente se acostuma com tudo). Lá fui eu. Durante os dias em que lá fiquei, li Cento e vinte dias de Sodoma e Gomorra, do Marquês de Sade. Era o que havia disponível. A longa introdução (umas cinqüenta páginas) é obra prima. Pra quem ainda não leu, recomendo. Talvez não valha a pena ler o livro propriamente dito. Pelo menos quem tem estômago sensível.
Foi então que me convidaram pra ir morar na cela 12, lá no Fundão. O Fundão era a última das três partes em que se dividia a Ala. De um lado, celas 12, 14, 16 e 18. Do outro, 15, 17, 19. Acho que era assim. Já não tenho tanta certeza de quais eram as últimas celas. Talvez houvesse as celas 20 e 21. Também não faz diferença. A não ser, claro, pra quem nelas eventualmente morasse. Quem me convidou, não lembro. Só sei que moravam lá na 12 dois militantes do Partidão e o Ismael, um antigo militante sindical que passara alguns anos no Partidão mas depois aderira à luta armada. Fomos para lá Toninho, Melo, Jonas e eu, todos do POC.
Dos dois “velhos” do Partidão, um deles era retraído, quase não se manifestava. O outro, o “Vô”, tinha um estribilho pra expressar a idéia de que algo era óbvio:
- Isso é coisa já vista.
Quanto ao Ismael, vivia a censurar os luxos da alta burguesia de um modo que me levava a brincar com ele:
- Ismael, você não tem ódio de classe. Você tem é inveja.

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