quarta-feira, 27 de julho de 2005

Parabéns, Léa


Em 1.954 minha família foi morar em um sobrado novinho, situado na rua Dom Lara, em Santos. Rua nova, recém asfaltada, que alternava casas modernas com terrenos baldios e cortiços. Faltava iluminação pública.
À noite, depois do jantar, quase sempre, meus pais sentavam-se no sofá da sala. Minha irmã mais velha ia para o piano. Minha irmã Léa e eu ficávamos cada um de um lado do piano. Durante hora, hora e meia, cantávamos canções populares. Minha irmã mais velha, além de tocar piano, fazia o contra canto. Léa fazia a segunda voz, contralto que é. Eu cantava a melodia, fazia a parte mais fácil. Era um tal de Índia, Que beijinho doce, e vai por aí.
Um dia, ao terminarmos uma canção, ouvimos, da escuridão da rua, aplausos. Fomos até a janela e lá estava a garotada do cortiço vizinho, aboletada no murinho que fechava a frente da casa. Ficamos encabulados. Mas felizes, pelo reconhecimento popular.
Essas quatro pessoas foram as que me formaram o caráter. Meus pais e minhas duas irmãs. Claro que o resto do mundo participou dessa construção. Afinal, a culpa não podia ser só deles. Por exemplo, foi nesse sobrado que vi Regininha Evangelista, filha do ex-ponta esquerda do Santos F.C., Evangelista, da linha dos cem gols (Siriri-Camarão-Feitiço-Araken-Evangelista), a melhor que o Santos teve até Dorval-Mengálvio-Pagão-Pelé-Tite, chegar chorando e anunciar a minha mãe o suicídio de Getúlio. Notei minha mãe ficar com olhos vermelhos. Compreendi, naquele instante, a força do baixinho.
Mas esses quatro são os meus maiores heróis. Já falei, neste blog, de meu pai, de minha mãe, de minha irmã mais velha. Hoje quero falar de minha irmã Léa. Só porque – hoje – ela completa mais um aninho de vida.
Por mais que os outros três sejam fundamentais, nada se compara à importância da Léa em minha vida.
Por quê? Há montes de razões. Ela segurou minha barra, quando meu pai morreu. Se não fosse ela, não teria feito engenharia. Não teria feito nenhum curso superior. Teria de ir trabalhar em algum balcão e fim de papo.
Quando fui preso, ela arrumou um jeito de ir me visitar uma vez por semana, sob pretexto de estudar matemática comigo.
Para meus filhos, ela é até hoje a tia ideal.
E tem mais, muito mais.
Mas nada disso é o que importa. O essencial é que ela foi a minha grande amiga na infância. Eu morria de medo de dormir. Apesar de nós três, os filhos, compartilharmos o mesmo quarto, ela juntava a cama dela à minha, pegava em minha mão e dizia:
- Beto, boa noite. Faz oração e dorme.
Eu orava, segurando a mão dela. Pedia a Deus que nos protegesse. Em seguida, mergulhava no sono que aquela mão me propiciava.
Muitos anos passaram. Vivi situações limite. Nelas, segurava na mão dela, e ouvia dela
- Faz oração e dorme.
Não orava mais. Faltava-me um deus a quem orar. Mas dormia apertando aquela mão, que nunca me abandonou.
E que vou morrer segurando.
Parabéns, mana.

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