domingo, 8 de maio de 2005

Era uma vez - XXIV
Bilhetes a Celina (4)


Já, já, vai ser dia das mães. Então, transcrevo aqui mais um bilhetinho enviado a minha mãe de dentro do Presídio Tiradentes. Como em outros bilhetes, ela é que anotou a data: 2/6/72.
Só retirei, do final, as menções ao pessoal da família. O resto, vai do jeito que foi escrito (ortografia mantida):


Oi, manhê!
Estou escrevendo de manhãzinha. São 7 e pouco. Dormi muito cedo (umas sete da noite) e acordei de madrugada, sem sono. Ontem estava lendo sobre Platão. Esta madrugada comecei a ler sobre Aristóteles e já me sinto diferente de ontem. É gostoso sentir-se como os pensadores que se estuda. Dormi platônico e acordei aristotélico. Mas em tudo isso predomina a idéia grega de “justiça”. Ela não significa, para os gregos da Antigüidade, o mesmo que modernamente. Para êles, era uma noção de equilíbrio: o justo é não ultrapassar os limites eternamente fixados. Na moral aristotélica, isso significa a valorização do meio-têrmo. Algo como: “a virtude está no meio”. A coragem, por exemplo, é virtude porque é o meio-têrmo entre a covardia e a temeridade. E daí pra frente.
Tudo isso me lembra uma frase de um companheiro de cela: “Quem acende uma vela a Deus e outra ao Diabo, acaba ficando no escuro”. Frase que, como se vê, nada tem de aristotélica...
Com tudo isso, aprendo coisas curiosas. Platão era a favor da dissolução completa da família. Os filhos deviam ser retirados dos pais ao nascer, tomando-se cuidado para que não se conhecessem (os filhos aos pais e vice-versa). Além do mais, as mulheres deviam ser desfrutadas em comum pelos homens do grupo. As crianças deveriam ser educadas pelo Estado. Se os donos da moral de nossa Terra ficam sabendo disso, o pobre Platão vai passar por maus momentos... A ignorância em nossa Terra é tão grande que seria cômica, não fôsse trágica. Mas como diz um escritor argentino, ao dizer quase o mesmo de sua Pátria: “isso é algo que se deve reconhecer com todo carinho”...
Ah! Aristóteles recomenda que as crianças sejam concebidas no inverno, e justifica falando em ventos que sopram não sei como... Eu nasci com a fôrça do calor, como diria o humorista luso...
Quanto ao cotidiano: tudo bom, esperando com inesperada calma a liberdade. O estudo da Filosofia é um ótimo sedativo. Roupas sujas, vasilhas e quejandos serão devolvidos sábado, como de hábito (bonito, né!)
Quanto ao mais não há nada a dizer. Como diz Eurípides: “o sofrimento em demasia torna-se ridículo”. E eu não quero ser ridicularizado.
(...)
Na senhora, um beijão grandão.
Té manhã! Tchau!
Beto

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