terça-feira, 10 de novembro de 2009

Era uma vez XXXVII -
O torturador light


Nos anos 60, enquanto cursava engenharia eletrônica na Politécnica – USP, morei com minha mãe em uma pacata vila das muitas que havia na Vila Olímpia, em São Paulo.
Na mesma vila morava um de meus professores na Poli, Roberto Marconato.
Naquela época, no curso de eletrônica, a relação entre alunos e professores era quase sempre muito estreita e informal. Os professores eram quase todos bastante jovens, pouco mais velhos que nós alunos. Além disso, vivia-se a transição dos circuitos baseados em válvulas para os compostos de transistores. Os professores haviam sido formados em válvulas. Quanto aos circuitos com transistores eles os estavam estudando junto conosco. Vai daí, nosso relacionamento era de muita transparência e mesmo de amizade.
Acrescente-se a isso o fato de morarmos na mesma vila e ter-se-á uma boa noção de meu relacionamento com Roberto Marconato. Eu estava no início dos vinte, ele devia estar com pouco mais de trinta anos. Já tinha uns dois filhos, frutos do casamento ainda recente.
Era comum, nos finais de semana, que eu conversasse longamente com ele na ruela em que vivíamos, enquanto ele vigiava os filhos pequenos a brincar.

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Início de agosto de 1.971. Estou na OBAN. A parte mais pesada da tortura já passou. Passo os dias e noites em interrogatórios mesclados a pancadas com pedaços de paus e a choques elétricos com aquelas maquininhas a manivela com as quais nossos algozes se distraem. Mas as pauladas já são mais esparsas e menos contundentes. Os choques são dados nas mãos e parecem servir apenas para lembrar que o tormento não terminou.
Certo dia, início de noite, sou chamado para interrogatório. Aguarda-me um sujeito mais ou menos da minha altura, pouco mais velho que eu, magro. Ainda não o tinha visto por lá.
É certo que o sono me atormenta, a vista está um tanto embaçada. Mas ao encará-lo me espanto: parece o Marconato. Parece não. É.

Procuro controlar minha reação. Não. Não é ele. Mas só pode ser um irmão gêmeo. Tenho medo de demonstrar que de algum modo o conheço. Isso pode não ser bom para mim. Os torturadores usam pseudônimos e não querem ser identificados de nenhum modo por nós. Por motivos óbvios.

Ele amarra cada um dos dois pólos da maquininha às minhas mãos. E saímos pelos corredores do DOI-CODI à procura de uma sala livre para começar o interrogatório. O ambiente é relativamente calmo. O quanto pode ser calmo um local de torturas. Já não há presos novos, sujeitos a torturas mais agudas. Há a rotina macabra de interrogatórios apimentados por pequenas maldades. Já não há quase nada a extrair desses depoimentos. Mas eles, os homens do major Ulstra, precisam cumprir sua jornada de trabalho.

Ao longo de nossa caminhada, o sujeitinho gira esporadicamente e sem muita convicção a manivela do pequeno dínamo. Os choques são leves e me causam pouco sofrimento. Mas já estou exausto pela falta de repouso, pela tensão constante e choramingo. Sim. Choramingo. Isso parece diverti-lo. Minha humilhação o satisfaz.

Uma vez instalados em uma pequena sala, já sentados, ele deixa a maquininha de lado e inicia as perguntas. Respondo com voz cansada. Tudo é muito repetitivo. Ele não tem mais o que perguntar e insiste em perguntas já repisadas por outros carrascos.

Mais tarde, já no Presídio Tiradentes, durante a visita de sábado, minha mãe me contou que enquanto eu estava na OBAN ela recebera a visita da esposa do Marconato, que foi até nossa casa para confortá-la. Durante a conversa, como minha mãe se dissesse aflita por não ter notícias minhas, a visitante lhe falou que ficasse calma, porque eu estava bem e havia quem estivesse cuidando para que eu não sofresse (não sei se as palavras foram exatamente essas, mas foi algo por aí). Fiquei na dúvida: ela teria realmente informações de dentro da OBAN ou estaria apenas querendo acalmar minha mãe?

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Janeiro de 1.973. Acabo de sair do presídio em liberdade condicional. Em um de meus primeiros finais de semana fora da tranca, meu sogro – para testar minha reação – nos convida, a minha mulher e a mim, para almoçarmos no Círculo Militar, do qual é sócio.
Aceitamos. Aliás, apesar de não nutrir nenhuma simpatia por exércitos, nunca tive aversão a militares. Ao contrário, durante meu curso de engenharia tive três colegas oficiais da Marinha que eram exemplos de bom caráter e excelentes alunos. Tenho um tio que se reformou como coronel da Aeronáutica e com o qual tenho excelentes relações e pelo qual nutro muito carinho. Nesse mesmo ano de 73 eu viria a dar aulas para o 3° ano de Engenharia Naval, na Poli. Os melhores alunos da turma eram os dez oficiais da Marinha que se valiam do convênio existente entre ela e a Escola Politécnica.

É certo que as Forças Armadas moldam seus membros de um modo que não me agrada. Mas engenheiros também têm seus cacoetes, assim como advogados etc etc.

Também é verdade que esse meu tio que referi acima teve de abrir mão de seu sonho de ser aviador e contentar-se com a Intendência (área administrativa) pois, na época, a Aeronáutica não admitia aviadores negros. E o preconceito não se restringia ao aspecto racial. Tenho um primo loiro que também nutria o desejo de ser aviador e se viu impedido de realizá-lo porque seu rosto era bastante marcado pelos resquícios das muitas espinhas que o atormentaram por toda a adolescência. Ao contrário do tio de que falei, ele recusou a Intendência e foi cursar engenharia fora da Aeronáutica.

Faço votos que todos esses preconceitos pertençam ao passado das Forças Armadas. E voltemos a nosso almoço dominical no Círculo Militar.

O almoço transcorreu sem nenhuma ocorrência especial. Ao final, estávamos caminhando para a saída do clube quando encontro com meu ex-professor Roberto Marconato, que chega com mulher e filhos.

Pergunto se ele costuma freqüentar o Círculo Militar e ele responde que sim, que seu irmão é oficial do Exército.

Despeço-me dele e de sua esposa. Nunca mais o vi.

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O presumível irmão dele foi – é verdade – um torturador light. Pelo menos comigo.
Claro que Roberto Marconato, meu ex-professor, não pode ser minimamente incriminado pelas escolhas do irmão, mesmo que o torturador seja seu irmão gêmeo.

Quanto ao torturador, me agrada crer que ele seja atualmente – assim como todos os torturadores – um indivíduo atormentado pelo próprio passado.

Gostaria muito de reencontrar Roberto Marconato para tirar a limpo a dúvida. Caso isso viesse a ocorrer, começaria por perguntar se seu irmão oficial do Exército não apresentou, lá na década de 70, indícios de que seu salário tenha repentinamente e por um bom tempo aumentado coisa de três a quatro vezes.

Era, pouco mais pouco menos, a recompensa recebida pelos militares torturadores. E a quase totalidade estava lá graças a isso.

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