quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Era uma vez XXXIV -
Relatos de Ricardo Prata Soares - 1


Explicação (por Santos Passos):

No final de 2007, dia seguinte ao Natal, eu viajava de Gold Coast para Sydney, na Austrália, quando me chegou um e-mail do antigo companheiro do POC, Ricardo Prata Soares, o Hugo, sobre quem já escrevi aqui.
Ele acabara de descobrir meu blog e começara a ler os textos da série Era uma vez.
Não concordara com algumas coisas que lera. Trocamos alguns e-mails. Sugeri publicar essa troca de e-mails. Ele argumentou que eram textos escritos às pressas, sem cuidado. Propus, então, que ele escrevesse calmamente sobre o que bem entendesse daquele período e eu publicaria. Topou. Assumi com ele o compromisso de publicar tudo do jeito que ele me mandar. Só me reservo o direito de tecer comentários. Comentários que ele poderá, de sua parte, comentar também.
Enfim, vamos fazer tudo com a maior limpidez possível. Afinal, este não é um blog de esquerda. Nem de direita. É simplesmente um blog pobre porém decente. Hehehe.
Ah: fiz uma ou outra correção no texto do Prata. Detalhes de digitação. Estão todas assinaladas em negrito e itálico simultâneos.


PRIMEIRO RELATO por Ricardo Prata Soares

CONTANDO HISTÓRIA DO POC

Eu havia saído do POC por divergências e assinei um documento de rompimento. Entrei no POC após longas conversas com Nilmário Miranda em Belo Horizonte. Gostava de um texto sobre “as contradições” de Eder Sader e minha formalização de ingresso foi na presença dele. Quando fui enviado para São Paulo, passei por diversos endereços e contatos. Somente na prisão soube que Eder e Nilmário haviam rompido com o grupo que ficou no POC.
Discordava de Merlino e Ângela. Fui contra a viagem deles que não era oficial, e chamei aquilo de licença para ir a Paris. Rompi com o tipo de centralismo imposto e afirmei que a organização estava frágil e que precisamos sobreviver para contar a história. Propus desaparecer na “massa cinzenta” conforme conselho de Lenine para estes períodos. Depois me expulsaram e nunca soube o que argumentaram.
Passaram-se meses e construí minha vida semi-clandestina sem ajuda do POC.
Minha relação política de proximidade eram os amigos do PRT, dissidentes da AP onde militei longos anos. Alias, minha prisão decorreu da queda deles. O contexto é que minha mãe faleceu no interior de Minas e fui ao enterro. Na volta fui preso logo depois que cheguei em casa. Tinha impressão que ela estava vigiada, mas não tinha como fugir. Era um sobradinho com uma única entrada e eu tinha trazido minha irmã menor, órfã, comigo.
Cheguei à OBAN e vi diversos militantes do POC, não sabia que eles também estavam presos. No primeiro dia me pouparam e disseram que estavam respeitando meu luto. Depois me disseram que tinham um documento de minha expulsão e usaram isto para me persuadir a falar. Queriam Ângela e Merlino. Sei que sai do pau-de-arara para dar lugar ao Merlino. Não sei calcular quantas horas se passaram entre minha queda e a dele. Mas, não vejo nenhuma possibilidade de ter entregado o endereço deles e me parece que isto aconteceu antes da minha queda. Por azar eu sabia o nome completo de Ângela e nunca o dei. E ela era a mais procurada e não Merlino. Eu soube da queda no caso Regis, por amigos do PRT, com quem mantive contatos. Eu avaliava a possibilidade de sair do país com o apoio deles.
Achei normal estar excluído de conversas nas celas, mesmo porque havia minha saída da organização, que foi homologada como expulsão e não sei se em que termos pejorativos. Estranhava que os militantes do POC saiam tão rapidamente da OBAN e depois do DOPS. Depois vi, com o fechamento do Tiradentes, todos serem transferidos para o Hipódromo e de lá soltos. Eu fui deslocado para o Carandiru junto com os militantes da Molipo, Ala Vermelha, ALN, PRT e outras. Creio que dentre os que foram para lá somente Nilmário e eu não tínhamos participado em ações armadas. Fiquei nove meses no Carandiru, o tempo todo numa cela com Altino Dantas do PRT. Já havia sido condenado em Minas um ano antes. Acreditava que ficava preso devido ao meu passado antes do POC e não entendia porque todos saíram e eu ficava. Saí em liberdade condicional e obrigado a viver em Minas Gerais.
Levei trinta anos para saber que era suspeito de ser responsável pela queda do POC. Um ex-aluno me enviou uma reportagem da revista Teoria & Debate veiculado na Fundação Perseu Abramo, do PT. Segui a pesquisa dele e encontrei seu Blog. Mas, vamos por parte, primeiro o PT. Trata-se de uma matéria assinada sobre um documentário que minha filha tinha participado na direção e como personagem. Reproduzo aqui uma passagem que interessa ao assunto:
“Maria de Oliveira Soares nasceu em 1969, filha de Eleonora Menicucci de Oliveira e Ricardo Prata Soares, ambos então militantes da Polop (Política Operária).
Vindos de Minas, os pais de Maria viviam em São Paulo na clandestinidade, quando, em 1970, Ricardo foi preso. Eleonora foi presa no dia seguinte com a filha de um ano e meio, quando se dirigia à casa de um tio, para que este a levasse a Minas para viver com a avó.” Texto da jornalista.
“Eu só me lembro de flashes. Mas, pelo que a minha mãe conta, eu fui com ela para a Oban (Operação Bandeirantes, órgão dos diversos serviços de segurança, precursora do DOI-Codi). Além dela, o Paulo Vannuchi, que estava preso lá, me contou que viu de sua cela eu chegar no colo da minha mãe." Citação de minha filha.
Maria tinha nove meses de vida e foi presa junto com Eleonora, minha esposa, na casa de um tio meu para esperar o meu retorno do enterro. Não sei quem registrou que eu fui preso antes. Maria nunca me consultou para a produção do documentário e nem Eleonora. A única dica está no terceiro parágrafo recortado: Paulo Vannuchi.
No mesmo período, buscando a fonte do meu ex-aluno, encontrei o blog do ex-companheiro do POC, o Guerra. E aí vi mais histórias mal contadas. Desta vez com data recente. Incontinente escrevi ao Guerra e iniciei meu processo de defesa. Ao mesmo tempo fui atrás da história oficial em publicação pela Presidência da República, Secretaria Especial de Direitos Humanos, com apresentação do Paulo Vannuchi.
Agora entendo porque sempre tive tanta dificuldade com o PT, mesmo sendo profissional de pesquisas eleitorais. E eu, ingênuo, atribuía tudo aos meus debates teóricos em 1974, no mestrado de Ciência Política, com João Batista Mares Guia depois eleito deputado pelo PT. E a história provou que eu tinha toda razão em combater o Mares Guia e não ter nenhuma simpatia com o PT. Mas, a questão da história oficial das esquerdas brasileiras fica para outro relato, este é um problema coletivo e afeta a história de todas as organizações de esquerda do período anterior à década de 80.
Fui condenado duas vezes pelo POC, dentre uns nove processos que tive desde 1964. Recorri ao Superior Tribunal Militar duas vezes, perdi e ganhei parcialmente o que me permitiu sair do Carandiru em liberdade vigiada. Como no pacote de páginas e páginas de depoimentos do POC não havia coisas suficientes para me condenar. O Ministério Público com aprovação do Procurador Geral da República, da época é claro, recorreu a outros depoimentos para me acusar. Estou anexando a acusação deles. Mas, posso destacar e o Passos pode ler tudo no anexo, o seguinte:
“Assim o depoimento judicial de Alberto Augusto Junior, verbis:
“Que esta célula estudantil funcionou até outubro de 1970; que em novembro daquele ano interrogado foi convidado por Ricardo Prata Soares, Laurindo Martins Junqueira Filho para participar da direção administrativa do POC, quando então o interrrogado foi residir na Av. Chibarás, 260, onde residiu até a data de sua prisão ocorrida em 28 de julho de 1971; que a direção citada mantinha contatos com regional do RS através de Wladimir Neto Ungaretti e com referência a regional de SP estes contatos eram feitos por membros da citada direção: que posteriormente Ricardo Prata Soares foi substituído por Ana Mércia Marques da Silva e Ricardo desligou-se da “organização”.
(vide: fls. 3.375-v – 129 vol.)
Vou deixar de incluir o outro argumento do Procurador Geral da República contra mim que se baseia no depoimento-interrogatório de Ana Mércia. O Passos pode lê-lo no documento em anexo.
Meu caro Guerra, se os arquivos de interrogatórios fossem abertos algumas considerações veiculadas em seu Blog seriam modificadas com certeza. A única maneira que tive foi obter legalmente dados do processo no STM para ler as razões de ser condenado duas vezes pelo POC num mesmo artigo da Lei de Segurança Nacional. Espero que no futuro os famosos arquivos possam ser abertos. Assim, outros poderão entender porque eu assisti do Carandiru a liberação de todos os militantes do POC. Como eu tinha me desligado, certamente não serei eu quem vai começar a história da queda do POC.
Quanto à história da prisão e morte de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, o Nicolau, lhe passo os dados da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, do livro digitalizado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos “Direito à Memória.e à Verdade” que considero muito bem relatados. Estão disponíveis pela internet no site da Presidência da República. E você vai me encontrar lá. Anexei, também, algumas folhas do meu fichário da ABIN, para você saber mais sobre a versão policial sobre minha pessoa. Só não posso aceitar que a história das organizações de esquerda que combateu a ditadura militar possa ser contada a partir de interrogatórios policiais, revelações sobre tortura e conversas de presos políticos enquanto trancafiados.
Li quase tudo do seu Blog, antes de escrever. Eu não sabia que você era amigo do Nicolau, ambos de Santos, e que partilhavam a mesma residência.

Ricardo Prata Soares, janeiro de 2008.


É claro que tenho alguns comentários a tecer sobre o primeiro texto do Prata. Mas vou deixar para amanhã ou depois por duas razões: uma muito simples, tenho de trabalhar e o tempo hoje está curto. Outra razão é que penso ser melhor os leitores lerem só o texto dele. Não quero que meus comentários interfiram já.

Por fim: fico profundamente grato ao Prata por dispor-se a esse diálogo.

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