É muito comum associar-se espírito
comunitário a desinteresse pela propriedade privada.
Até mesmo as posições anticomunistas
sempre alertaram para o “perigo” que o comunismo representava
para a propriedade privada, mesmo sabendo-se que o que se pretendia
com a revolução socialista era a eliminação da propriedade
privada dos meios de produção e não de toda e qualquer propriedade
privada. Por outro lado, esse receio conservador não era de todo
desprovido de razão pois o socialismo se propõe, sempre, a
“tolerar” alguma propriedade privada. Diga-se, também, que
tendências a incentivar a propriedade privada são invariavelmente
vistas como afastamento dos padrões socialistas. Vejam-se, por
exemplo, as mudanças dos últimos anos no regime chinês.
Por tudo isso, desde que comecei a ter
contato com as aldeias portuguesas, particularmente as de
Trás-os-Montes, já lá se vão 15 anos, saltou-me aos olhos a
aparente contradição entre o espírito comunitário que nelas reina
e o rigoroso sentido de propriedade privada que é nelas a norma.
Em tempos idos, as aldeias – nas
quais as habitações não eram dotadas de boa infraestrutura -
tinham todas a Casa do Povo, acompanhada do Forno do Povo, no qual
todos vinham cozer seus pães.
Com os tempos modernos, as aldeias
passaram a ser dotadas de energia elétrica, esgoto, e as habitações
puderam desfrutar de água encanada, aquecimento e eletrodomésticos
(o frigorífico, a arca, o microondas etc etc). A Casa e o Forno do
Povo, penso que na quase totalidade delas, passaram a ser figuras
decorativas.
Contudo, o espírito comunitário que
compunha a superestrutura ideológica das aldeias manteve-se intacto.
Exemplos dele não faltam. As matanças dos porcos em Dezembro
(tradição de séculos que vem sendo destruída, a meu ver, por um
tolo conceito de saúde pública e um protecionismo animal
inconsistente), que se efetivava em cada família com a ajuda de
vizinhos e amigos convidados, que vinham auxiliar a matança e
desfrutar de merecidas refeições festivas uma vez terminado o
labor. As vindimas, em Outubro, nas quais também amigos vão ajudar
a colher as uvas, levá-las ao lagar e pisá-las. Tudo isso seguido
das indefectíveis refeições comemorativas do trabalho realizado. A
apanha das castanhas, operada de modo análogo (isso nas ditas
“terras frias”; nas “terras quentes” é mais adequado
falar-se em azeitonas). Sem falar nas festas anuais dos santos de
cada aldeia, em que cada habitante colabora com uma quantia
determinada para o brilho da festa.
De outro lado, chama a atenção o
rígido respeito à propriedade privada de cada família. Uma
cerejeira pode estar coalhada de cerejas perfeitamente acessíveis a
qualquer passante, mas se ela está no terreno de João, é de
propriedade de João, ninguém que não seja da família de João
esticará a mão para apanhar uma cereja que seja.
E há ainda aspectos curiosos em
relação à propriedade. Um castanheiro, por exemplo, pode estar bem
no meio do terreno de António mas ser propriedade de Abel. Será
Abel a colher as castanhas na época da apanha e consumi-las ou
levá-las ao mercado para venda.
Um caso que me chegou estes dias ao
conhecimento: uma de minhas primas e seu marido têm – em frente à
casa deles – um terreno de bom tamanho no qual plantam de um tudo.
Verduras, legumes etc. Pois ocorre que por razões que desconheço
há, em meio ao dito terreno, uma faixa de terra de dois metros de
largura que pertence a outro habitante da aldeia. Eles então levam a
plantação até ao limite da tal faixa, pulam os dois metros (que
ficam como terra nua pois o proprietário não os utiliza) e
continuam sua horta até o fim do terreno.
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