terça-feira, 10 de junho de 2014

Comunidade e Propriedade

É muito comum associar-se espírito comunitário a desinteresse pela propriedade privada.
Até mesmo as posições anticomunistas sempre alertaram para o “perigo” que o comunismo representava para a propriedade privada, mesmo sabendo-se que o que se pretendia com a revolução socialista era a eliminação da propriedade privada dos meios de produção e não de toda e qualquer propriedade privada. Por outro lado, esse receio conservador não era de todo desprovido de razão pois o socialismo se propõe, sempre, a “tolerar” alguma propriedade privada. Diga-se, também, que tendências a incentivar a propriedade privada são invariavelmente vistas como afastamento dos padrões socialistas. Vejam-se, por exemplo, as mudanças dos últimos anos no regime chinês.

Por tudo isso, desde que comecei a ter contato com as aldeias portuguesas, particularmente as de Trás-os-Montes, já lá se vão 15 anos, saltou-me aos olhos a aparente contradição entre o espírito comunitário que nelas reina e o rigoroso sentido de propriedade privada que é nelas a norma.

Em tempos idos, as aldeias – nas quais as habitações não eram dotadas de boa infraestrutura - tinham todas a Casa do Povo, acompanhada do Forno do Povo, no qual todos vinham cozer seus pães.

Com os tempos modernos, as aldeias passaram a ser dotadas de energia elétrica, esgoto, e as habitações puderam desfrutar de água encanada, aquecimento e eletrodomésticos (o frigorífico, a arca, o microondas etc etc). A Casa e o Forno do Povo, penso que na quase totalidade delas, passaram a ser figuras decorativas.

Contudo, o espírito comunitário que compunha a superestrutura ideológica das aldeias manteve-se intacto. Exemplos dele não faltam. As matanças dos porcos em Dezembro (tradição de séculos que vem sendo destruída, a meu ver, por um tolo conceito de saúde pública e um protecionismo animal inconsistente), que se efetivava em cada família com a ajuda de vizinhos e amigos convidados, que vinham auxiliar a matança e desfrutar de merecidas refeições festivas uma vez terminado o labor. As vindimas, em Outubro, nas quais também amigos vão ajudar a colher as uvas, levá-las ao lagar e pisá-las. Tudo isso seguido das indefectíveis refeições comemorativas do trabalho realizado. A apanha das castanhas, operada de modo análogo (isso nas ditas “terras frias”; nas “terras quentes” é mais adequado falar-se em azeitonas). Sem falar nas festas anuais dos santos de cada aldeia, em que cada habitante colabora com uma quantia determinada para o brilho da festa.

De outro lado, chama a atenção o rígido respeito à propriedade privada de cada família. Uma cerejeira pode estar coalhada de cerejas perfeitamente acessíveis a qualquer passante, mas se ela está no terreno de João, é de propriedade de João, ninguém que não seja da família de João esticará a mão para apanhar uma cereja que seja.

E há ainda aspectos curiosos em relação à propriedade. Um castanheiro, por exemplo, pode estar bem no meio do terreno de António mas ser propriedade de Abel. Será Abel a colher as castanhas na época da apanha e consumi-las ou levá-las ao mercado para venda.

Um caso que me chegou estes dias ao conhecimento: uma de minhas primas e seu marido têm – em frente à casa deles – um terreno de bom tamanho no qual plantam de um tudo. Verduras, legumes etc. Pois ocorre que por razões que desconheço há, em meio ao dito terreno, uma faixa de terra de dois metros de largura que pertence a outro habitante da aldeia. Eles então levam a plantação até ao limite da tal faixa, pulam os dois metros (que ficam como terra nua pois o proprietário não os utiliza) e continuam sua horta até o fim do terreno.


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