sábado, 28 de janeiro de 2006

No tempo da solidariedade


No começo de 1.967 (é isso, faz 39 anos), eu dava aulas particulares de matemática e levantava uma grana muito razoável. Seria meu último ano no curso de engenharia eletrônica e eu já estudava para o vestibular de filosofia. Mas aulas particulares já me cansavam. Queria dar aulas em cursinho preparatório para vestibulares. Os tais cursinhos tinham panelinhas fechadas. Era difícil entrar nelas.
Belo dia, vi um anúncio em jornal para dar aulas num tal de CAPI Vestibulares. Fui até lá. O cursinho ficava em um prédio pra lá de antigo, no centro de São Paulo, esquina de São João com Anhangabaú. O dono do cursinho, o Labibe, me explicou que se tratava de turma com aulas aos sábados e domingos, pra alunos que não dispunham de outro horário livre. As aulas de matemática seriam, todas, aos domingos pela manhã. Como a cavalo dado não se olham os dentes, aceitei.
Foi meu primeiro trabalho com carteira assinada. Tudo registradinho, bonitinho.
Vez em quando, o turco, como era conhecido o dono do cursinho, me pedia pra substituir algum professor durante a semana, em alguma turma regular. E, assim, fui entrando devagar no mundo dos cursinhos.
Até que o Tomaselli, que dava quase todas as aulas de matemática do cursinho, brigou com o turco e foi embora. Labibe me chamou às pressas. Pediu que eu assumisse tudo. Ao aceitar (depois de uma conversa com o Tomaselli, que me liberou), eu ficava com um curso de engenharia para terminar, um vestibular de filosofia pela frente e aulas todas as noites, algumas manhãs e – last but not least - todos os domingos de manhã. Mas, aos vinte e dois anos, a gente faz isso aí e ainda sobra tempo.
Quando terminei engenharia e entrei na Faculdade de Filosofia da USP, fui morar na rua Maria Antonia, que era o centro do universo, pelo menos para os estudantes e revolucionários de São Paulo. E assumi todas as aulas de Matemática do CAPI Vestibulares.
O diretor do CAPI era o Farina. Devia ter seus quarenta e poucos anos, mas pra mim, que tinha vinte e três, parecia um ancião. Mas ancião que topava encarar nossa vida de boemia. Eu dava aulas desde as sete da manhã (às vezes, marcávamos aulas extras às seis) até a hora do almoço. Assistia às aulas de filosofia à tarde e voltava a dar aulas à noite. Lá pelas onze e tanto, depois da última aula, íamos todos jantar. Era o melhor do dia. Comíamos e, principalmente, bebíamos e conversávamos. Ninguém ia dormir antes das duas. Jamais.
Um dos nossos assuntos prediletos era o cursinho. Todo mundo metia o pau no turco. E bolávamos receitas de como o cursinho poderia ser uma maravilha, não fosse a toupeira do dono. De facto, Labibe não era – propriamente – um cara que tivesse uma visão arrojada de seu próprio negócio. O prédio em que ficava o cursinho era, além de velho, escuro, baixo astral. As apostilas dos cursos eram horrorosas, mal feitas e de apresentação pra lá de sofrível. O nome do curso era, com o perdão da má palavra, Centro de Aperfeiçoamento e Preparação Intelectual (daí a sigla CAPI). O símbolo gráfico, digamos assim, era uma reprodução do Pensador. Tudo terrivelmente kitch.
Lá para o final de 1.968, comecei a incitar o Farina a fazer algo novo.
- Sugere ao turco que pinte o prédio com cores alegres, faça apostilas bonitas, coloridas. Que ponha anúncios decentes nos jornais.
Parêntesis: o Labibe achava que, quando pagava um espaço publicitário na imprensa, precisava aproveitar bem o espaço pago. Acontecia, então, que ele comprava uma página inteira da Folha de S.Paulo (que custava o preço de um Fusquinha zero) e enchia tanto a página de textos, letra miúda, que aquilo ficava parecido a um caderno de classificados.
O Farina reagiu à minha provocação:
- Eu cutuco o turco, desde que você tope me ajudar.
- Fechado.
Dia seguinte, Farina chega sorrindo:
- O turco topou. Vamos montar um curso Intensivo, só dezembro e janeiro, como teste. Se der certo, maravilha.
Passei a trabalhar mais de vinte horas por dia. Muitas vezes, dormia umas três horas em um sofá que havia na secretaria do cursinho.
Foi um dos mais deliciosos trabalhos que realizei na vida. Selecionamos um time fantástico de professores, fizemos apostilas caprichadas, e – glória a deus nas alturas – colocamos um anúncio de página inteira na Folha só com o novo logotipo do CAPI (uma obra-prima que achamos enterrada em uma gaveta qualquer) e o endereço, chamando pra matrículas no Intensivão. Noventa por cento da página em branco. O turco quase teve um infarto.
Primeiro dia de matrículas, fila na porta do prédio.
O curso Intensivo foi um fenômeno. Gente saindo pelo ladrão. Professores de primeira, apostilas perfeitas. Vez em quando, cancelávamos alguma aula, levávamos os alunos pro auditório, passávamos um filme e o Álfio Beccari comentava o dito cujo. Foi assim que os alunos assistiram, por exemplo, a Os Companheiros (eu, assisti umas dez vezes ao filme).
Resultado: visto o faturamento, o turco me convidou pra ser diretor do cursinho, junto com o Farina.
Preparamos os cursos regulares de 1.969 com o maior capricho. Primeiro dia de aulas, todas as salas (agora pintadas em cores alegres) cheias de alunos. Labibe me chama até a sala dele. Pede que eu assine um papel qualquer em branco (nem me lembro do que se tratava, mas era alguma maracutaia). Disse que não assinava. Ele me demitiu. Sumariamente.
Desci até a sala dos professores, que começavam a chegar para o primeiro dia de aulas.
Disse aos que lá já estavam que tinha acabado de ser demitido.
Ítalo Tronca e Ricardo Maranhão, jornalistas e professores de História, não se conformaram. Reuniram todos os professores e subiram pra falar com Labibe.
- É verdade que você demitiu o SP?
- É. Ele não me obedeceu. Eu o demiti.
- Mas você pediu a ele algo ilegal.
- Não volto atrás. Ele está demitido.
- Então, todos nós pedimos demissão.
- Vocês não podem fazer isso.
- Ou você desiste da demissão do SP ou nós saímos. Todos.
- Não volto atrás.
- Então, estamos fora.
Todos – eu disse todos – os professores foram embora. Labibe teve de ir de sala em sala, explicando o inexplicável aos alunos. Pediu um tempo para recompor o quadro docente. Com isso, é óbvio, perdeu quase todos os alunos. Só veio a se reerguer um tempo depois. Parcialmente, diga-se.
Um ano depois, um dos professores daquela turma inesquecível me procurou pra perguntar se eu tinha alguma objeção a que ele retornasse ao CAPI.
Claro que não tinha. E jamais vou esquecer esse grupo.
Apenas eu não sabia – ainda bem! – que isso ia ocorrer apenas uma vez na minha vida. Nunca mais tive tal manifestação de solidariedade por parte de um grupo.
Coisas assim já não existem. Por essas e por outras, tenho orgulho da minha geração.
Desconfio que, apesar de termos feito muita merda, vivemos emoções desconhecidas no mundo de hoje.

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