sexta-feira, 4 de março de 2005

Era uma vez - XVIII
Caindo na teia


Era final de julho. Voltávamos da praia. Estrada livre, nenhum movimento. Minha mulher e eu olhávamos para frente. Víamos o asfalto estendido adiante, ladeado por plantações, pastos, esparsas construções. Mas, principalmente, olhávamos para a frente de nossas vidas. E víamos um período de reflexão, de estudo. Voltávamos das férias com decisões tomadas: sair da organização, parar com aquele corre-corre da militância política, reservar tempo para ler mais, pensar mais.

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O primeiro semestre de 1.971 estava sendo marcado por uma evolução rápida na situação da esquerda brasileira. Acuadas, cada vez mais abandonadas pelos “simpatizantes” (aquele pessoal da pequena e da alta burguesia que pretendia lavar seus pecados na água benta da revolução prestando pequenos serviços aos militantes, mas preservando suas vidas dentro do quadro do “milagre” brasileiro dos anos setenta), as organizações clandestinas perdiam quadros aceleradamente. Uns eram presos, muitos fugiam para o exterior, outros simplesmente sumiam, esperando que seus nomes fossem esquecidos e que pudessem refazer suas vidas.
Eu, que tinha pouco tempo de militância, me vi alçado de uma hora pra outra à direção nacional do POC (Partido Operário Comunista, dissidência da POLOP). Meus orientadores (Ângela Maria Mendes de Almeida (Taís), Luiz Eduardo da Rocha Merlino (Nicolau), Emir Sader), todos correram para o abrigo da Europa. De lá, escreviam mostrando um crescente distanciamento de nossa realidade. Quanto mais a situação aqui piorava, mais eles nos conclamavam à luta sem tréguas. Sem dúvida, ser revolucionário sul-americano em Paris era bem mais fácil.

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O carro deslizava na estrada. Mas nossa idéia era fixa: interromper aquela loucura antes que fosse tarde. Durante um mês inteiro de férias havíamos discutido a nossa situação. Chegáramos à conclusão de que não havia mais o que fazer. Era preciso parar. Parar, pensar, refazer planos. Chegando a São Paulo, eu iria providenciar a devolução da casa em que morávamos, na realidade um “aparelho” da organização. Alugaríamos outra casa, sem vínculos com a militância. Íamos começar tudo outra vez.

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Antes de partir para a França, Nicolau me passara a casa da avenida Chibarás, Moema, São Paulo. Era uma casa térrea (se desconsiderarmos o sótão), de dois quartos, sala, cozinha e banheiro, situada em um enorme terreno. Tinha entrada lateral para automóvel e, ao fundo, além de uma garagem, um grande quintal com algumas árvores frutíferas. O importante, do ponto de vista logístico, era que se tornava possível entrar na casa com o carro, ir até o fundo, desembarcar ao abrigo de olhares estranhos e entrar na casa pela porta da cozinha.
Por todo o primeiro semestre de 1.971, essa casa foi usada para reuniões da direção nacional do POC. Eu levava para lá, na sexta-feira, um por um, os membros do Comitê Central, fazíamos a reunião ao longo do sábado e do domingo. Ao final, eu devolvia todos a pontos indicados por cada um deles. Todos iam e voltavam de olhos fechados. Ninguém sabia onde ficava a casa. Ou melhor, quase ninguém. Isso ficaria claro mais tarde.

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Entramos em São Paulo saindo da via Dutra. Algum tempo depois estávamos perto de casa. Parei junto a um telefone público para fazer algumas “verificações”. Afinal, já fazia um mês que saíramos de casa. Liguei para um amigo que também era professor na USP (Universidade de São Paulo), no mesmo instituto que eu.
- Tudo bem por aqui?
- Tudo. Sem novidades.
Era o que eu queria ouvir. Em seguida, liguei pra minha mãe. Se não houvesse nada de anormal na USP, nem em minha família, é porque não havia problema.
Minha mãe só disse que estava com saudade. De resto, tudo certo.
Rumei para casa.

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Tudo foi se acumulando sobre minha cabeça. Os simpatizantes que guardavam a biblioteca do partido pediram para que tirássemos da casa deles todo o material. Morriam de medo. Lá fui eu buscar tudo e colocar na casa da Chibarás. Os que guardavam armas, com mais razão, pediram para livrar-se delas. Também carreguei tudo comigo. Dentro da casa, minha mulher e eu tínhamos de andar pulando sobre caixas de livros e de armas. Não havia como não perceber que a situação se tornava insustentável. Eu ainda mantinha uma vida dupla, ou seja, ainda não caíra na clandestinidade. Era professor da USP e mantinha a militância como atividade paralela. É bem verdade que essa atividade ocupava quase que as vinte e quatro horas de cada um dos meus dias.
Foi chegando o mês de julho. Férias na Universidade. Depois de longas conversas com minha mulher, resolvemos que devíamos pedir licença no Partido, viajar para uma praia na qual o pai dela tinha casa e usar esse tempo para pensar.

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Entrei na avenida Chibarás e dirigi rumo ao bangalô em que morávamos (morávamos? Não, militávamos, seria mais adequado). Diante dele parei o carro. Olhei para a fachada da casa. Tudo estava tranqüilo. Os jornais acumulavam-se junto ao portão de entrada lateral. Mas, sabe como é, seguro morreu de velho, resolvi dar mais uma volta no quarteirão.

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Na praia do Lázaro, Ubatuba, naquele tempo, nem luz elétrica havia. Tínhamos, na casa confortável de meu sogro, lampiões de querosene para iluminar tudo (ou já havia luz elétrica? Não sei mais.). Ao chegar lá, começamos a ler os livros que havíamos levado (já não me lembro quais eram, mas havia muito Marx). Sei que conversamos muito, nesse mês. E decidimos que iríamos parar com a militância política, levar uma vida de estudos e esperar a situação evoluir para decidir mais adiante quanto ao futuro mais remoto.

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Dada a volta no quarteirão, lá estávamos de novo diante da casa. Olhamos um para o outro. Entramos? Sim, vamos lá. Desci do carro, peguei do chão aquele bolo de jornais velhos, afastei-os do caminho, abri o portão. Entrei com o carro. Fui até o fundo, como costumava fazer quando levava os companheiros para reuniões do Comitê Central.
Ainda dentro do carro, olhei para a porta da cozinha. Notei a falta de um vidro na porta. A porta da cozinha era metade (a de baixo) madeira, metade um quadriculado de pequenos vidros, por trás dos quais havia uma portinhola de madeira que impedia que se visse dentro.
Um deles estava quebrado.
- Ladrão. Entrou ladrão na casa enquanto estávamos fora.
Incrível minha capacidade de imaginar sempre a “melhor” hipótese.
Fazia frio. O inverno de 1.971 foi particularmente frio, para os padrões de São Paulo.
Desci do carro, guarnecido por uma “japona”, casaco que se usava na época.
Estava quase alcançando a maçaneta da porta quando essa se abriu, abruptamente, e – de dentro da “minha” cozinha - saíram vários indivíduos, todos à paisana, portando metralhadoras.
Formaram um círculo à minha volta. Ordenaram à minha mulher que descesse do carro e se juntasse a mim.
Minha maior preocupação, nessa hora, foi a de acalmar um dos membros do círculo. Um jovem, quase imberbe, que certamente cumpria sua primeira missão de combate, tremia tanto que temi que sua metralhadora disparasse à sua revelia.
Começava o fim.

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