Lá por volta de maio de 1.971, Nicolau me escreveu, da França, dizendo que voltaria ao Brasil em agosto. Não sei, não sei mesmo, mas penso que dos que haviam fugido para Paris, Nicolau era o que menos se conformava com isso. Ele queria estar no centro dos acontecimentos, participar de tudo. Em suas cartas ridicularizava os esquerdistas franceses, que estendiam tapetes vermelhos para os membros de organizações que desenvolviam aqui no Brasil a luta armada. Achava tudo muito pouco sério, naquela Paris em que os militantes de organizações de esquerda iam para as reuniões carregando um pão debaixo de um braço e com o outro uma garrafa de vinho.
Sei lá.
A questão é que, nessa época, foi preso o Jonas, um companheiro nosso, arquiteto, ou estudante de arquitetura, não me lembro bem. Ele tinha poucos contatos, conhecia pouca gente. Não havia grande perigo com sua prisão. O que eu não sabia, era que ele conhecia Nicolau, de Santos. Conhecia sua família, sabia onde morava.
Jonas sabia que Nicolau estava na França. Para amenizar o pau, disse que sabia onde morava a mãe de Nicolau, em Santos.
Não sei porque, Nicolau voltou antes do combinado. Foi para casa da mãe. Lá foi preso.
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Junto com alguns outros jovens militantes, fui a nossa primeira reunião de célula do POC. Corria o ano de 1.970. Estávamos acostumados a reuniões de estudo com o jornalista Reinaldo Lobo (irmão de um atual “astro” da TV de fofocas, Leão Lobo). Eram reuniões cercadas de alguns cuidados de segurança, é certo, mas levadas em clima razoavelmente ameno. Um belo dia, Reinaldo nos comunicou que passaríamos a integrar uma célula do POC e que seríamos apresentados a um coordenador novo. Ele, Reinaldo, sairia de cena (mais tarde soube que saía do partido, por discordar da evolução dos acontecimentos).
Foi assim que conheci Nicolau. Parecia sósia de Trotsky (desconfio que cultivava a semelhança). Parecia, também, algo mais velho que eu. Soube, depois, que era três longos anos mais novo. De cara, deu um esporro no grupo todo, ao criticar nossa despreocupação com questões de segurança. Disse que aquilo não era brincadeira, que a coisa era séria etc etc etc.
Daí pra frente, nasceu uma amizade sólida. Trabalhamos juntos até a partida dele, com a companheira Taís, para a França. Taís mora hoje em São Paulo. Nunca mais nos falamos. Tenho até o telefone dela. Não vou ligar. Não haveria nada a dizer.(1)
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Nicolau adotou tática suicida, pelo que me contaram. Ao ser torturado, xingava seus algozes. Acredito que isso seja verdadeiro. Combina com seu estilo. Em função disso, foi pendurado no pau-de-arara durante catorze horas.
Aqui, vale uma explicação para os “leigos”. Pau-de-arara é um instrumento de tortura até hoje muitíssimo utilizado em prisões e departamentos policiais no Brasil. O cidadão (!?) é despido. Coloca-se por trás de seus joelhos um pedaço resistente de pau. Suas pernas são então dobradas e amarram-se suas canelas a suas coxas, deixando preso o tal pau entre suas pernas. Em seguida, o pau é colocado na posição horizontal, a mais ou menos um metro do chão, apoiado em cavaletes, ou em duas mesas, ou em qualquer outro tipo de apoio. O indivíduo fica, conseqüentemente, pendurado, de cabeça para baixo. A partir daí, vale a criatividade dos torturadores. Pauladas, choques elétricos nos órgãos genitais etc etc.
Só que – de tempos em tempos, coisa de 15 a 20 minutos – o indivíduo precisa ser retirado dessa posição para que o sangue volte a circular adequadamente para seus membros inferiores.
(Dizem que essa hora é a pior. O formigamento das pernas é quase insuportável.)
Quer dizer que, quando um preso diz que ficou três horas no pau-de-arara isso significa, a rigor, que ele ficou pendurado três horas, sim, mas em intervalos de 15 a 20 minutos, com interrupções. Exatamente como num programa de TV, com seu intervalos comerciais.
Com Nicolau não foi assim, pelo que me contaram. Ele foi pendurado e “esquecido” sozinho em uma sala. Durante 14 horas. Suas pernas gangrenaram. A morte veio poucos dias depois.
(Em função disso, todos nós, presos a seguir, não passamos pelo pau-de-arara. Parece que os chefões não gostaram do “erro” cometido pelo pessoal operacional.)
Antes disso, foram cobradas dele algumas informações. Pelo que me disseram, três: onde ficava minha casa; qual o endereço de Taís, na França; a terceira não me lembro. Tudo isso me foi contado por Ricardo Prata Soares, o “Hugo”, que já estava preso na época em que a equipe do major Ulstra (ou Ustra?) fez o que fez com Nicolau. Prata denunciou a tortura e morte de Nicolau em seu depoimento na justiça militar.
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Aliás, Prata é um caso a ser analisado: preso com a esposa e com uma filha de poucos anos (três ou quatro), foi submetido – e também a esposa – a torturas que incluíram a ameaça de que se torturasse também a menina. Tratando-se de indivíduo normal, não resistiu e falou o diabo. Foi ele que colocaram diante de mim quando eu ainda teimava em afirmar que não tinha nada a ver com nada. Chegou na minha frente e disse que o Nicolau tinha sido morto e que todos estavam presos. Acabou com minha resistência. Eu, no lugar dele, faria o mesmo.
Só comecei a discordar do Prata quando, já no Presídio, ele começou a puxar desesperadamente o saco da turma da ALN e cercanias, no intuito de recuperar prestígio, já que fora taxado de traidor pelos inquisidores de plantão. Me lembro de uma tarde de sábado, dia de visitas, as famílias a conviver conosco no pátio do presídio. Prata e eu conversávamos num canto. Eu desancava a turma da ALN (no tempo em que eu tinha 26 anos eu era bravo) e ele: “Mas Renato (meu nome não era esse, é claro, eu era conhecido por outro pseudônimo) (2), se você ficar contra a esquerda, como você vai sobreviver?!”
Essa, na verdade, era a preocupação de boa parte do pessoal. Muitos dependiam dos contatos adquiridos na esquerda para arrumar emprego.
Parece, pelo que leio nos sites de esquerda, que o velho Prata – e sua Eleonora (3) – recuperaram o prestígio que haviam perdido. Que continuem felizes. Junto a mim, jamais perderam prestígio nenhum. Mas não sei se isso lhes interessa (4). Afinal, não tenho emprego para oferecer a ninguém.
Nicolau informou meu endereço. Só que não tinha mais como levar os policiais até a casa. Não conseguia mais andar (aliás, nunca entendi porque os militares não iam sozinhos, já que sabiam o endereço. Será que não dispunham de um guia da cidade?!). Prata os levou até lá. Pelo que ele mesmo me disse, não tinha conseguido manter os olhos fechados durante os transportes para minha casa e tinha descoberto em que local ela ficava.
Lembro, aliás, que durante o julgamento na Auditoria Militar, um amigo da família de Nicolau aproximou-se de mim e me perguntou se Nicolau podia ser considerado herói. Disse-me que a mãe dele queria saber se o filho era ou não herói.
Disse que sim. Que Nicolau era herói.
Não sei o que é um herói. Millôr Fernandes definiu certa vez: Herói é o cara que não teve tempo de fugir.
Ironias à parte, se Nicolau não é herói, quem é?
Cada vez sei menos. Não sei se valeu a pena Nicolau ter dado a vida por essa causa. Não sei se seria melhor se tivesse cedido logo no início. Não sei.
Sei que Nicolau era uma pessoa daquelas que me fazem – ainda – acreditar no ser humano.
Até nunca, Nicolau.
Jamais vou esquecer que tentamos melhorar esta merda deste país.
Mas, decididamente, ele não merece caras como você.
Notas acrescentadas em 27/09/2014:
1) Soube, há pouco, que Taís (Ângela Maria Mendes de Almeida) chegou a viver um tempo cá em Portugal. Espero que a estadia cá tenha feito bem a ela.
2) Quando escrevi esse texto eu ainda usava o pseudônimo de Renato Santos Passos. Meu nome de guerra, pelo qual era conhecido no presídio, era Guerra.
3) Eleonora Menicucci, atual ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, no governo Dilma. Ela e Prata parece que já estão separados há muitos anos.
4) Ricardo Prata parece não ter gostado das coisas que escrevi aqui. Mandou-me e-mail a mostrar algum aborrecimento. Pedi a ele que escrevesse o que bem entendesse. Ele me mandou um primeiro texto, que publiquei, mas não escreveu mais nada e rompeu o contato.
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