segunda-feira, 27 de julho de 2015

O paralelismo na poesia bíblica (3)


Até que me convençam do contrário, penso que a melhor tradução para o paralelismo tipo Jano, de que falei antes, vem a ser a que utiliza os dois significados da “palavra Jano”, a palavra de duplo sentido que dificulta a versão do hebraico para outras línguas.

Assim, uma sugestão que dou para traduzir Gênesis 49:26 (parte) é a seguinte:

As bençãos de teu pai excedem as bençãos de meus pais
Tal como as montanhas eternas excedem o cume das colinas antigas.

Emprego nessa tradução tanto “meus pais” quanto “montanhas eternas”, os dois significados que a palavra hebraica “horái” tem. No texto original essa palavra aparece apenas uma vez, conferindo ao texto uma ambiguidade que não se deixa transportar para outra língua.
O “tal como” que usei como ligação entre as duas partes pode bem ser substituído por outro elo equivalente. Ou pode mesmo ser omitido, ficando a ligação implícita.
Por fim, usei a tradução “cume de” para o hebraico “taavát”. A melhor tradução é mesmo “desejo de”, “aspiração de”. Mas o dicionário BDB (hebraico-inglês) admite que se traduza “taavát” por “boundary”, ou seja “fronteira”, “limite”, "extremidade”. Já que se trata de colinas, preferi usar logo “cume de”.
A tradução deixa de lado a literalidade em prol da clareza.



domingo, 26 de julho de 2015

O paralelismo na poesia bíblica (2)

Ainda sobre o paralelismo Jano:
Este versículo de Gênesis 49, o 26 (parcial) é de difícil tradução.

ברכת אביך גברו על-ברכת
הורי
עד תאות גבעת עולם

Lê-se mais ou menos assim:

Birrôt avirrá gaveru al-birrôt

Horái

Ad taavát guiveôt olâm

Esses versos fazem parte do belíssimo poema que nos traz a benção de Jacó a seus filhos, pouco antes de morrer.

A "palavra Jano", nestes versos é "Horái".
Ela tanto significa "meus progenitores" quanto "montanhas eternas" ("everlasting mountains" segundo o BDB, dicionário hebraico - inglês do Velho Testamento de Brown, Driver e Briggs).

Diante disso, não se deve ter surpresa quando, depois de ler esse mesmo versículo na tradução para português "Almeida corrigida e revisada fiel":

 As bênçãos de teu pai excederão as bênçãos
 de meus pais, 
até à extremidade dos outeiros eternos

lermos na tradução "Almeida revisada Imprensa Bíblica":

As bênçãos de teu pai excedem as bênçãos
 dos montes eternos, 
as coisas desejadas dos eternos outeiros

Já a Bíblia de Jerusalém traduz assim:

Bençãos de teu pai te elevaram sobre bençãos
das montanhas antigas
sobre as aspirações das colinas eternas.

Difícil, não?


quinta-feira, 23 de julho de 2015

O paralelismo na poesia bíblica

Há poesia em muitos sítios da Bíblia.
O penúltimo capítulo de Gênesis é um deles. Jacó, antes de falecer, abençoa seus filhos.
Os Salmos, os Provérbios, Jó, os Cânticos dos Cânticos são poesia. Etc.

A poesia do Tanakh, o Velho Testamento, não possui rimas, nem métrica, no original hebraico.
Mas tem uma característica chamada de paralelismo.
Os versos guardam relações entre si que podem receber esse nome: paralelismo.
Há o paralelismo sinônimo:

"Perdoa todas as tuas faltas
Cura todos os teus males."

(Salmos 103:3)

O segundo verso é "sinônimo" do primeiro. 
De algum modo repete o primeiro.

Há outros tipos de paralelismo. 
Mas o que importa aqui é o paralelismo Jano.
Jano vem, aqui, do deus romano. O deus de duas caras.



Esse tipo de paralelismo é assim chamado porque  há uma palavra central que tem duas acepções diferentes. Uma serve à parte inicial do poema. A outra faz sentido em relação ao final da composição poética.

Exemplo?

Cântico dos Cânticos 2:12:
הנצנים נראו בארץ 
עת הזמיר הגיע
וקול התור נשמע בארצנו

Isto pode ser lido mais ou menos assim:

Hanitsanim nireú baárets, 
et hazamir higuiiá 
vekôl hatôr nishmá beartsênu.

Pois: a palavra "zamir" que segue o artigo "ha", significa tanto "poda" quanto "canto".

Os dois primeiros versos podem ser traduzidos por:

As flores aparecem na terra, 
o tempo da poda chegou.

Mas o segundo e o terceiro versos exigem outra tradução:

O tempo do canto chegou
e a voz da rola se escuta na nossa terra.

Essa não é, infelizmente, a tradução que temos para o português.

A Bíblia de Jerusalém, neste versículo, não se sai mal:

As flores florescem na terra,
o tempo da poda vem vindo,
e o canto da rola 
está-se ouvindo em nosso campo.

Já a "Almeida corrigida e revisada fiel" ignora a poda:

Aparecem as flores na terra, 
o tempo de cantar chega, 
e a voz da rola 
ouve-se em nossa terra.

Enfim, como melhor traduzir isso, de modo a levar em consideração os dois significados da palavra  "zamir" e, assim, ser fiel - o mais possível - ao texto hebraico?