terça-feira, 6 de dezembro de 2011

7Belo


Tenho um sobrinho que considero - já que os matemáticos preferem contar a partir do zero - meu filho zero. Depois vieram o primeiro, o segundo e o terceiro...
Eu tinha 17 anos quando ele nasceu. Meu pai morrera no ano anterior. Comecei, graças a ele, a aprender como se lida com uma criança.
E que criança!

Um dia desses, não faz muito tempo, mandou-me e-mail em que relata a visão que um garoto de nove anos teve das visitas que fazia, com os pais e a avó, ao tio preso no Presídio Tiradentes, em São Paulo, nos remotos anos de 1.971, 1.972.

Ele começa por sugerir o contexto da leitura:

Bom ... então ... agora ... toma duas doses da tua mais vagabunda bebida que estiver por perto ... e lê:

Daqui pra frente a palavra é toda dele:

Um cara com uma arma na cintura ia até quase no meio do pátio e aos berros mandava todos embora.
- O horário da visita acabô !!!
Este com certeza esbravejava outras frases não mais delicadas prá tirar todo mundo dalí.
Enquanto o milico berrava, ele, com seus + ou - oito anos, só conseguia prestar atenção nas famílias reunidas, uma a uma em "rodinhas" se despedindo dos que alí iriam ficar ...ao invés de ouvir o tal ...
Todo sábado era assim ..
Informação na cabeça dele era tudo ...
Via ... ouvia ...aliás, via mais do que deixavam ele ouvir.
Na época não tinha muito tempo prá sentir o que realmente acontecia . Mas não era de todo um tolo.
Só quem poderia dizer a data e a hora seria sua vó ... Quando a bomba estourou ... E a notícia chegou !
Ele estava no quintal de casa e viu ela, sua vó, receber a nova.
Com desespero ouviu, debruçada na janela de sua casa que ficava nos fundos do quintal, a notícia !
Foi um tal de: chora de um lado ... chora de outro ... cuidado com os vizinhos daqui ... cuidado com os vizinhos de lá ...
Enfim ... foi "o oh do borogodó do penacho roxo" !!!
E ele só ficou olhando ...
Tudo que ele queria era entender o que estava acontecendo !!!
Mas na verdade ... ninguém conseguia entender nada !!!
E ... então ... nos sábados iam todos prá lá.
Sua vó, seu pai, mãe, irmão ...
Com a idade que tinha ele só olhava ...filmava ... sim ... era tudo um filme ...
No fim de tudo ... na cabeça dele ... tudo isso virou um filme ... uma história ... este maldito roteiro ...
Não só na cabeça dele ... mas na cabeça de um monte de espertos que ganharam e continuam ganhando muita grana :
Músicas aos montes ... filmes .... muito confete e serpentina ...
Deram a "letra" prá neguinho "corrê" da Pátria mãe antes da "casa caí" - exilados -
Tomaram muito vinho aí por fora enquanto a "raça" aqui só tomava era muito choque e muita porrada !!!
Teve gente que até virou Presidente !!!
Quem é que não lembra da Copa de 70 ... Porra !!! Os caras jogavam muuuuiiitto !!!
Mas .. nas coxias desse teatro todo ... a história tava mais prá ginástica olímpica !!!
E ... nas coxias ... muitas famílias se encontravam ...
Lá na Tiradentes.
Estação do metrô ?
Não !
Na época não havia uma estação de metrô com todos os contornos, côres, cantos vivos que a arquitetura exibe hoje.
Na época famílias entravam alí por dentro de corredores intermináves.
E ele acompanhava a sua junto com outras tantas. !!
Tudo era muito curioso ... Pois ... chegada certa altura do circuito, depois de muita fila, era homem e menino prá um lado e mulher e menina prá outro.
E era gente prá caralho ...
O silêncio era o rei da festa, digo, da fila ...O que nos restava era olhar um nos olhos do outro como se fosse a última vez ... na real ninguém sabia ...
O mais louco é que a gente tinha que tirar a roupa e depois da "revista" colocar de novo ... umas duas ou até quatro vezes ... dependia da chefia da carceragem .
Prá ele e para os alí presentes isso não "pegava" nada ... Desde que no fim dessa travessia a gente "botasse os olhos" em cima de nossos amados !!!
E o prêmio era esse !!!
Era muito louco ...
Ao mesmo tempo que as famílias chegavam lá dentro do presídio, os presos encontravam não só com seus familiares mas também com suas caras metades, resultado:
Era beijo e abraço prá todo lado ... fora o que devia ser "disfarçado" ...
Dentro de um contexto era lindo de ver !!!
Presos políticos e suas famílias .. abraçados ... cada família formava uma rodinha ... todos abraçados pelos ombros ... todos alí em pé !!!
Ele pequeno, se enfiava no meio da roda ... Tinha Mário, Maria, tinha até baiano !
Uma coisa ele nunca entendeu:
O tio dele fumava a porra de um cigarro francês forte prá caralho - goloaze - sei lá como se escreve isso, nem filtro o bicho tinha, vinha num maço azul calcinha ... Enfim, o cara dava uma tragada atrás da outra, até aí tudo bem ... mais aí ele soltava a fumaça prá baixo no meio da bendita roda ... Vinha aquele fumaceiro de baixo prá cima !!!
Porra ! Por que ele não jogava a fumaça prá cima logo de uma vez ??? Vai sabê né ?!?
Tinha também umas coisas prá comer e beber. Cada família tinha sua festinha particular.
Em uma das tais rodas-famílias, tinha um cara que fazia questão de falar mais alto que todo mundo ... bem revoltadinho o rapaz. Diziam que era filho de milico, e também disseram que ele não falou alto por muito tempo ...
As histórias flutuavam por aquele pátio ... e sempre que ele chegava perto a conversa mudava ... era uma puta confusão prá ele "costurar" os assuntos ...
E ... nesse angu de caroço ... ele ficava andando prá lá e prá cá ... prá lá e prá cá ...
Havia um lugar que ele sempre ia. Enquanto Mários, Marias e baianos malhavam advogados, em um canto do pátio ele parava na frente da grade de entrada dos presos - no caminho das celas. Um corredor que ia escurecendo conforme a distância ia aumentando. Do lado de dentro da grade uma senhora negra ... bem negra ...e bem gorda.
Esta ficava sentada alí ... com as pernas abertas ... toda suada ... chegava a brilhar ... tão úmida como o corredor ...
E os dois ficavam se olhando nos olhos até que ele fugia o olhar.
Na cabeça só lembranças - passeio de barco no lago do ibirapuera ... Esterzita ... conversas ... o tio andando de bicicleta na vila ... banho de canequinha no tanque da casa da vovó ...passeio de fusca com o tio fazendo o maior esporro com a buzina de trem ...
Será que tudo isso acabou ?
Não ... claro que não !
Sempre que dava, com um cigarro recém aceso, aquele ...
Seu tio puxava ele de canto e andavam por alí.
Depois de muita conversa vazia e perguntas do tipo : "Como você anda indo na escola?" Os dois acabavam lá nas latrinas do pátio que, prá ele, eram peças muito estranhas:
Como alguém consegue cagar sentado no chão ???
A conversa vazia acabava ... o problema de cagar sentado no chão já não importava ...
Do alto de seus + ou - oito anos a ficha caía e ele lembrava que aquele cara com uma arma de tambor na cinta, logo começaria a gritar.
Era como se fosse um velório ...
Todo mundo chorando ... e sempre alguém não voltava prá casa.
Mas sempre, antes dos gritos, seu tio olhava dentro dos olhos dele ... oferecia um trago do seu cigarro francês ... e nos olhos do tio ele achava alguma paz que lhe acalmava o coração.

Dona Celina, que não usava nenhuma droga mas sempre foi ligada no 220V, as quartas feiras levava prô filho e prá nora as compras da semana ou como se diz no sul "rancho". Comida, muito cigarro, bebida não alcoólica e muita laranja ( ha! ha!).

Pilotando seu FUSCA 68 azul escuro, toda ou quase toda quarta feira (tinha quarta que o "Seo Mário" pai da Suzi ia - lógico que não ia com o fusca) entregava as compras lá na Tiradentes. Quando digo que ela pilotava não é exagero. A mulher dirigia prá caralho - com todo o respeito - Basta dizer que ela é responsável pela "alfabetização motorística" de alguns, muito em especial, dele seu neto.

Ela era muito boa de volante mesmo ... Ia prá todos os cantos de Sampa. Balizava, dava ré em ladeira, fazia de tudo ... e nas quartas feiras até algumas várias ultrapassagens perigosas. A velhinha no volante "dava nó em pingo de éter" !

E nessas quartas feiras antes de fazer a entregua das compras no presídio, pegava seus então só dois netos lá na usp.

O horário para a chegada na tiradentes era rigoroso. A carceragem pegava pesado.

Graças a alguma professorinha bem "não" comida filha da puta a saída do colégio atrasou.

Sabendo das consequências de um atraso na chegada com as compras no presídio, viu sua vó sair dalí "a milhão" enfiando uma marcha em cima da outra ... apavorada ...

Ele sempre ia na frente ... com a bunda na ponta do banco, as mãos no "puta merda!" com a cara grudada no para-brisa. (não esqueça - estamos nos anos 70 - não existiam cintos de segurança e o tal "puta merda !" ficava em cima do porta-luvas)

Se sentia dentro de um video game, enquanto o irmão, no banco de traseiro, mal respirava.

A velhinha aquele dia ia bater todos os seus tempos. Usou um atalho por dentro do Instituto Butantã, (aquele das cobras) atalho este que chega direto na av. Vital Brasil e então na av. Rebouças, aí é só seguir reto ("toda vida" como diz o manezinho) e chegar no centro, no centro da cidade.

Dona Celina conhecia todos os atalhos, com certeza muitos ela mesma inventou, tais como suas bonecas feitas de sobras de pano, brincadeiras e suas receitas culinárias.

Seus atalhos preferidos eram os que chegavam na igreja de Perdizes. Ninguém conhecia tão bem como ela as travessas, contornos, praças e até o tempo dos sinais das avenidas: Cerro Corá, Heitor Penteado, Dr. Arnaldo e Av. Pompéia.

Dona Celina só não conhecia o efeito do óleo diesel, que os ônibus da cmtc deixavam, sobre o calçamento de paralelelípedo, na última curva na saída do instituto (aquele das cobras).

O fusca rabiou prá direita ... e a danada ainda arrumou ... virou o volante (côr de marfim com aro meia lua de alumínio) numa manobra rápida ... aí o carro veio prô plumo ... só não veio como também passou
e foi com o rabo prá esquerda ... aí seguiu em frente ... desceu um pequeno declive de grama e só parou em um muro de tijolinhos à vista.

Foi coisa bonita de se ver. De se ver e ouvir ... foi uma puta porrada !

No carro todo mundo tonto ... o irmão caçula saiu voando prá cima dele ... ele meteu a cara no vidro ... com o "melado" correndo pelo nariz e pela boca, ajudava a vó se desencaixar do volante. Eles querendo sair do carro e uma multidão de curiosos do lado de fora perguntando prá eles : _ "Que qui aconteceu ?! Que qui aconteceu ??!!"

Era ônibus parando ... polícia ... dava de tudo ...

Era gente aparecendo de todo lado ...só não vieram as cobras do instituto !

Mas ... mesmo com esse rolo todo ... não foi nesta quarta feira que as compras não chegaram ... Dona Celina dava jeito prá tudo ...

Em sua casa as coisas ficaram mais corridas. Muitas visitas e muitas conversas.

Utensílios, pertences, móveis ... Tinha até uma caixa: ela era grande de madeira ... muito bonita ... chaveada. Colocaram num canto da sala e disseram prá ninguém mexer!

Era o maior mistério prá ele e seu irmão ... No fim era só um faqueiro ... hã ?!

Em uma noite ele e a família se arrumaram como se fosse domingo e foram prá um lugar parecido com igreja: um prédio grande, cinza, com escadarias na frente ... muita gente dentro. O deixaram prô lado de fora em um sacada.

Não demorou muito ... tentou entrar ... não deixaram .. aí subiu em alguma coisa, mas só via um monte de cabeças. Era um zum zum zum danado lá prá dentro. Desistiu e voltou prá sacada.

Ficou alí olhando a rua, pensando vai saber o quê ...

Lá pelas tantas viu, saindo pelo andar térreo, uma tripa de gente ... vários ... silhuetas mudas ... de cabeças baixas ... entravam em um carro que hoje ... carrega dinheiro prá bancos.

Muitos sábados passaram ... Muitas quartas também ...

E depois ... bem depois disso tudo ... Seu tio lá no Paraíso leu um artigo publicado em um jornal ... quem sabe a folha ou o estadão.

E entre uma garfada de strogonoff e um gole de conhaque ... seu tio chorou ...

As lágrimas secaram e a vida seguiu dalí em diante ... um pouco mais normal ...


Cigano.

1 comentário:

Alcely disse...

Fico boba de como o meu filho ainda se lembra de tds. os detalhes!Coisas de que,nem eu,já não me lembro!!Nós sabíamos de mts. histórias,na verdadeira versão...na real, e não como eram anunciadas!!Tempos difíceis,mas, q/,embora deixando marcas e tristes lembranças,já se foram!!
Alcely.