segunda-feira, 13 de setembro de 2010
Lição de puericultura
(texto sem data, escrito em um dia qualquer do segundo semestre de 1.975. Por algum motivo de que não me lembro, quase todo o texto está em minúsculas)
conseguiu acalmar o guri sabe lá como, tantos os truques que tentou, tudo misturado, quem tem tempo nessas horas pra ficar isolando causas metodicamente, o que importa é o efeito. correu ao livro recém adquirido, Manual do Petiz, coisa do gênero, o nome não recomendava mas a inexperiência sim, de repente tendo de cuidar daquela miudice de exigências inadiáveis. procurou choro no índice remissivo e foi enviado a umas poucas tautologias do tipo "o choro do lactente indica frio ou calor ou cólicas ou febre ou fome ou ...". folheou mais um pouco aquele amontoado de frases vazias e desistiu, mesmo porque o guri já recomeçara o berreiro.
lembrou do pediatra que procurara na semana passada. já teria voltado de férias? afinal, se o médico examinasse a criança talvez pudesse dizer alguma coisa além das generalidades daquele livro inútil. onde estava com a cabeça quando comprara aquilo? a finalidade óbvia daquela geringonça era a de capitalizar a preocupação de pais inexperientes e reunir para o autor uns restos de salários esquecidos aqui e ali pela indústria do entupa-seu-bebê-com-os-produtos-da-mais-avançada-techologia. enrolou bem aqueles cinqüenta centímetros barulhentos e arrancou para o pediatra.
ficou pouco tempo no consultório de ar condicionado e bichinhos disney. o suficiente pra responder um questionário genérico, ver o moleque ser profissionalmente apalpado pelo médico e receber umas três receitas cheias de nomes horrorosos. ao sair pagou um dinheirão a uma secretária estrategicamente situada em uma mesa cercada de mamães aflitas e/ou aparvalhadas.
chegou a pensar em tomar o rumo da farmácia mais próxima mas estava assustado diante daquele ciclo interminável: um livro caça-níqueis que recomenda os produtos Vamos&Venhamos que causam problemas que só o pediatra pode resolver - ou melhor - pode encaminhar aos remédios dos laboratórios especializados em introduzir o recém nascido na rotina dos produtos e ante-produtos e metaprodutos. ainda tentou desculpar o pediatra: se todos procuravam lucrar ao máximo, não era culpa dele se o objeto de seu trabalho eram crianças doentes. Além disso, ele até que ficava com uma fatia pequena nesse rendoso negócio que faziam com a saúde das pessoas... Também, que podia fazer o pediatra se a pediatria continuava na estaca zero? Se nada se sabe com um mínimo de segurança a respeito de crianças recém nascidas, já que essa estória de conhecimento e ciência também é controlada pela indústria das doenças, por uma indústria doente, também precisando de remédios?... e desculpou o livro via pediatra e este através da indústria e esta graças à sociedade. voltou pra casa furioso e descontrolado, se bem que era o guri que gritava sem parar.
aquele sem fim de conexões impessoais e opressoras o agitava. pensava um pouco em tudo sem conseguir fixar-se em nada. os livros, médicos, indústrias, ciências, sociedade, tudo girava num turbilhão gigante. Pensou em lançar tudo fora e começou pelo livro. O Manual do Petiz foi minuciosamente picado e lançado janela afora. Jogou fora o pediatra, os pediatras, os remédios, as indústrias de remédios. Foi preso e condenado a cinco anos de reclusão quando tentava jogar fora a sociedade.
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