segunda-feira, 4 de abril de 2016

Minhas bibliotecas (1)


A maioria das pessoas que eu conheço nasceu em hospitais. Eu nasci numa biblioteca.
Minha mãe deu-me à luz em casa.
E a casa de meus pais era entupida de livros. Nela quase não se viam as paredes. Cobriam-nas estantes abarrotadas de livros.
Fosse meu pai um comerciante, eu cedo teria aprendido a diferença entre fatura e duplicata.
Em vez disso, apaixonei-me por livros.

Esse meu berçário, essa manjedoura ao pé da qual os animais e os magos e a estrela guia brotavam da imaginação do leitor, foi minha primeira biblioteca.
Minha em termos. Era de meu pai. Graças a esse detalhe, vivi minha primeira experiência com a censura. A cada livro que eu pegava para ler era preciso submetê-lo ao juízo paterno, que decidia se era leitura para um guri de 10 anos ou pouco mais.
Foi assim que li Coelho Neto. E não li Machado de Assis.
De Monteiro Lobato só me eram permitidos os livros para crianças. Os demais ficavam no índex.
Um livro de contos de Humberto de Campos mereceu censura seletiva. Meu pai, cuja honestidade tinha o bônus de uma acentuada ingenuidade, assinalou com uma pequena cruz o título de cada um dos contos que eu deveria evitar.
O leitor pensou certo. Foram os primeiros que li. E que me presentearam com alguns pesadelos.

Com a morte de papai, minha mãe resolveu doar a biblioteca à Faculdade de Teologia, em São Paulo. E, ao preparar nossa mudança de Santos, autorizou-me a separar um ou dois caixotes de livros que eu quisesse manter. Escolhi com cuidado os que me eram mais queridos.
Ao chegar a São Paulo o caminhão com a mudança, constatei que haviam confundido os caixotes de livros. Os que eu escolhera foram para a Faculdade. Para mim vieram dois caixotes com livros guardados ao acaso. Não me lembro de nenhum que me despertasse interesse.
Perdi minha primeira biblioteca. Mas não seria a última perda.


(continua)

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