terça-feira, 4 de julho de 2006

Era uma vez - XXXI
A cela dos travestis


Não sei por que, pois nunca tive acesso ao térreo do Pavilhão 2 do Presídio Tiradentes, mas bem embaixo do Xadrez 12, onde eu morava, ficava o Xadrez 14, do Corró. Devia ser alguma diferença na geografia – digamos assim – dos dois andares.
Era nessa cela que ficavam os travestis.
Nada, para eles, era passível de comportamento discreto. Viviam todas as situações com exagero, exacerbação. Afinal eles (ou elas) talvez estivessem sempre entre os mais perigosos habitantes do corró.
Nós, quietos moradores da 12, primeiro andar, tínhamos o privilégio (vá lá, digamos privilégio, sim, em algum sentido) de assistir – por meio das sombras projetadas na muralha próxima às janelas das celas, aos shows de striptease realizados a todo momento. Pode-se ao menos dizer que eram executados com capricho.
Mas também ouvíamos com freqüência gritos de dor e de fúria, resultados de lutas de vida ou morte entre eles. Tenho a forte impressão de que houve mortes ali, talvez várias.
Os travestis ajudavam os carcereiros a aumentarem seus rendimentos mensais. Volta e meia, eram levados ao longo da Ala (corredor das celas), expostos aos olhares de cobiça dos demais presos. Efetuada a venda, o carcereiro levava sua comissão.
Vez ou outra, um carcereiro levava alguns travestis para desfilarem no primeiro andar. Pura diversão, pois sabiam que os presos políticos não fariam negócio. Os travestis desfilavam super pintados, maquiados ao exagero, com roupas esvoaçantes. Legítimos Toulouse Lautrec.



Era – a um só tempo – distração e demonstração do ponto a que pode descer o ser humano.
O mito da caverna, aqui, se invertia: era bem melhor assistir às imagens na muralha do que confrontar-se com a realidade do desfile na Ala.

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