sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

Cienciarte de pegar/(descer d') o bonde-andando


Nos anos 50, em Santos, o transporte coletivo era feito primordialmente por meio de bondes. Até aí nada. Em São Paulo, nessa época, também predominavam os bondes. Só que em Santos os bondes eram abertos. Em São Paulo também houve bondes abertos mas o bonde característico era o camarão, pintadão de vermelho, fechado. Pra você ter uma idéia, era um ônibus andando em trilhos. Já o bonde aberto era outra coisa

Esse bonde aí é uma restauração feita em 2.000. Mas mostra bem como as laterais eram abertas, mostra os dois estribos em níveis diferentes (o debaixo era mais saliente). Repare no travão (verde) onde as pessoas apóiam o braço e que atravessa toda a extensão do bonde à meia altura. Esse travão podia ser levantado até o alto do bonde e preso lá em cima para liberar a subida e descida dos passageiros.

O bonde que me interessa é esse aí. Repare que há pessoas em pé nos estribos. Podia-se viajar ali. Claro que só os homens o faziam. As mulheres iam sentadas no interior do bonde (será que houve alguma maluca que rompeu esse tabu? Cartas para a redação). O fato é que os estribos tinham forte relação com a masculinidade. Calma que eu explico.

Primeiro o já dito: só os homens viajavam em pé nos estribos. Mas o mais importante: pegar o bonde (ou descer dele) em movimento era algo que um garoto precisava fazer se quisesse ser considerado Homem! E isso implicava o domínio dos estribos e dos balaústres (barras verticais nas quais era preciso segurar) (na foto do bonde restaurado dá pra ver melhor as tais barras. Elas eram metálicas, douradas). E, é claro, como em toda arte, havia várias maneiras e estilos de se subir n'/descer d' o bonde-andando.

Pra pegar o bonde não havia muita variação. Você ficava parado ao lado dos trilhos, olhando para o bonde que vinha em sua direção. Quando ele passava por você era pegar ou largar: você tinha de avaliar se a velocidade do bonde era ou não era excessiva. Essa avaliação era o cerne daquele ato. Se você decidia que dava e segurava no balaústre, das duas uma: ou você estava certo e a vida seguia feliz com o vento batendo em seu rosto e a masculinidade reafirmada ou você avaliara tudo errado e as conseqüências eram variadas, todas desastrosas: roupa rasgada, arranhões, hematomas, sorrisinhos de escárnio dos passageiros etc etc. Se você decidia que não dava e seu amigo pegava o bonde galhardamente, nem preciso dizer mais nada, né!

Pra descer do bonde havia basicamente duas grandes categorias: descer olhando pra frente ou descer de costas, ou seja, virado no sentido contrário ao movimento do bonde. Descer de frente era o feijão-com-arroz. Era saltar e correr pra evitar que a inércia atirasse você de cara no chão. É óbvio que quanto maior a velocidade do bonde mais difícil manter o equilíbrio ao descer. Aqui também havia o momento da avaliação. A vantagem é que dava pra disfarçar um pouco. Se você ficasse com medo de saltar, ninguém precisava saber que sua pretensão havia sido essa...

Descer de costas é que eram elas! Apanágio dos fiscais e grande objetivo a ser alcançado pela garotada, o descer-de-costas exigia uma destreza não muito comum. Era preciso - ao pular ao chão - dobrar o corpo para frente pra impedir que a inércia jogasse você de costas no meio da rua. Os fiscais - que passavam constantemente de um bonde a outro - faziam isso como quem descasca uma banana. Pra nós, pequenos, havia que começar por treinar em velocidades bem reduzidas, que o seguro morreu de velho. Quando se adquiria alguma habilidade na realização do ato, passava-se a caprichar nos detalhes pra mostrar Estilo.

Dos bondes me ficou (além da frase "Tudo na vida é passageiro, menos o cobrador e o motorneiro") o acelerado do coração na hora agá do sobe e desce. É. Quase uma iniciação sexual.

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