Há a leitura dita devocional e há a leitura histórico-crítica.
Segundo Bart Ehrman (Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, Ediouro, 2010, p. 16), na leitura devocional a preocupação é "com aquilo que a Bíblia tem a dizer - especialmente o que tem a dizer a mim, pessoalmente, ou à minha sociedade. O que ela me diz sobre Deus? Cristo? A igreja? Minha relação com o mundo? Sobre em que devo acreditar? Sobre como agir? Responsabilidades sociais? Como a Bíblia pode me ajudar a estar mais perto de Deus? Como ela me ajuda a viver?".
Já na abordagem histórico-crítica as preocupações são outras: o que os textos bíblicos significavam em seu contexto histórico original? Quais os verdadeiros autores dos livros da Bíblia? etc etc.
Nessa última forma de ler a Bíblia acabamos por saber, por exemplo, que Moisés não é o autor dos cinco livros do Pentateuco (ele viveu no século 13 a.C.. Já a redacção de Génesis, Êxodo etc etc se situa entre os séculos 10 a 7 a.C. São seiscentos anos de intervalo. Mais tempo do que a existência do Brasil, por exemplo...). Os quatro evangélicos canónicos, aqueles que constam do Novo Testamento, foram escritos ao longo de uns 70 anos, por indivíduos que não conheceram Jesus pessoalmente (o catecismo ensina diferente? Acontece que, nos últimos duzentos anos, a arqueologia, o estudo do hebraico e do grego arcaicos etc etc, evoluíram muito e permitiram conclusões mais precisas sobre a autoria dos livros bíblicos).
Aprendemos, também, que não dispomos de originais de nenhum dos livros bíblicos. Apenas dispomos de cópias de cópias de cópias... feitas à mão ao longo de séculos. Os textos de tais cópias não coincidem entre si. É preciso desenvolver critérios de análise que permitam afirmar, com alguma segurança, qual a versão mais fiel ao original desconhecido.
De resto, os autores dos livros bíblicos, quando os escreveram, não sabiam que suas obras seriam reunidas todas em um único livro, a Bíblia.
Decorre daí o interesse de outro tipo de leitura: a leitura horizontal da Bíblia.
Claro que a Bíblia pode - e deve - ser lida da maneira como lemos qualquer outro livro. Começa-se do começo e vai-se até o fim. É a leitura que chamaremos de vertical.
Nos meus tempos de garoto, enquanto meus colegas do Colégio Canadá, em Santos, aproveitavam os domingos ensolarados para irem à praia, eu frequentava a Escola Dominical da Igreja Baptista. Lá aprendia que, se lesse 3 capítulos da Bíblia por dia e cinco aos domingos, completaria a leitura integral da Bíblia exactamente em um ano (já não me lembro bem se 5 capítulos eram só aos domingos ou também aos sábados...). Aprendia que os livros da Bíblia (a protestante) são 66. São 39 do Antigo Testamento e 27 do Novo. E é fácil guardar isso: 3*9=27... Não foi à toa que demorei muitos anos para me dar conta de que o domingo é o dia do sol (Sunday).
Mas é muito instrutivo experimentar a chamada leitura horizontal.
Na leitura vertical, você lê o Novo Testamento começando por Mateus, depois envereda por Marcos, vai a Lucas e termina os evangelhos com a leitura de João. Você se emociona com os quatro. Muito bem.
Experimente, por outro lado, fazer o seguinte: pegue, por exemplo, o nascimento de Jesus. Mateus e Lucas o descrevem. Marcos e João não. Anote em duas colunas paralelas de folhas de papel, todos os detalhes narrados por Mateus (coluna da esquerda, digamos) e todos os detalhes contados por Lucas (coluna da direita).
Agora comece a compará-los. Verá como há pequenas discordâncias mas também diferenças importantes e inconciliáveis.
Se quiser, faça o mesmo com os relatos da morte de Cristo, da ressurreição etc etc. Bart Ehrman, na obra citada acima, dá exemplos de tais comparações para os casos seguintes: morte de Jesus, nascimento de Jesus, a genealogia de Jesus, o que diz a voz no baptismo de Jesus?, para onde foi Jesus um dia após ser baptizado?, a filha de Jairo já estava morta?, quem é a favor de Jesus e quem é contra ele?, quanto tempo durou o ministério de Jesus?, o julgamento perante Pilatos, a morte de Judas e as narrativas da ressurreição.
A partir dessa leitura horizontal, o estudo histórico-crítico da Bíblia o levará a entender bem melhor os textos.
Mas não deixe de ir à praia, de vez em quando.
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