sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Prestação de contas


No remoto ano de 1.961 afastei-me de Santos para estudar em São Paulo. Queria fazer cursinho pré-vestibular. Eu ainda ia fazer o 2° científico, como se dizia na época, mas inventei isso de fazer cursinho duas vezes: durante o 2° científico e também durante o 3° científico, como todo mundo. Hoje em dia, essa prática já está de há muito institucionalizada. Até os vestibulares das faculdades consideram os que fazem vestibular sem terem concluído o curso secundário. São os treineiros.
Pois é. Modestamente, quem inventou essa fui eu.
Na verdade, se tomei essa decisão por perceber que o ensino do Instituto de Educação Canadá estava muito ruim, também pesou o querer livrar-me um pouco da tutela paterna, muito rígida.
Se a idéia de fazer duas vezes cursinho foi excelente, o tiro me saiu pela culatra no que se referia ao desejo de fugir ao controle paterno.
Minha rotina, em São Paulo, era muito mais rigorosa do que qualquer vigilância de meu pai.
Por ser pastor batista, meu pai conseguira que eu ficasse alojado na Faculdade de Teologia, anexa ao Colégio Baptista Brasileiro, em Perdizes. Lá residiam alguns seminaristas. Fui morar com eles.
Acordava com o primeiro toque do sinal de início das aulas do Colégio. Ao terceiro toque, lá estava eu, entrando por um portão interno, que ligava a Faculdade ao Colégio.
Ao final das aulas, era o tempo de trocar o material escolar do Colégio pelo do cursinho, pegar um ônibus em direção à praça João Mendes, almoçar na cocheira de um bar quase na esquina da Conselheiro Furtado e dirigir-me à Conde de Sarzedas, onde me aguardava o Curso Di Tullio, do qual qualquer um que por lá tenha passado garanto que guarda saudade.
Ao final da tarde, ônibus de volta a Perdizes.
Fazia um lanche dentro mesmo do quarto, tomava um banho e estudava até meia-noite, uma da manhã.
Isso, de segunda a sábado, sem refresco. Nada de cinema, nada de nada.
O dinheiro que meu pai me dava pra enfrentar a semana era consumido nos seis almoços, nas doze viagens de ônibus e nas passagens de ida e volta a Santos, nos finais de semana (ia a Santos no final das aulas de sábado e voltava domingo à noite). Ah. E em algumas frutas, pão, coisas assim, para o lanche da hora do jantar.
Havia também o pasteleiro chinês da Conselheiro Furtado, na hora do intervalo. Lá, junto com dois amigos, me divertia pedindo pastéis e Crush e ouvindo o chinês repetir pra dentro da cozinha:
- Sai tlês pastéis e tlês Clushs!
Da semanada que meu pai me concedia, quase nada sobrava. Mas era preciso prestar contas. Todo sábado ao chegar em casa, em Santos, tinha de entregar a meu pai uma folha de papel com o balanço da semana.
Vai daí, houve um sábado em que esqueci de fazer a prestação de contas.
Meu pai mostrou-se irritado:
- Não se esqueça de trazer o relatório na próxima semana!
Eu, que já não agüentava mais ter de produzir aquilo toda semana, arrisquei:
- Pois o senhor quer saber como é feita a tal prestação de contas, da qual o senhor é tão cioso? Pois saiba que, antes de vir para cá, em algum intervalo de aula do sábado à tarde, enfio a mão no bolso, conto quanto sobrou e faço conta de chegada: tanto para os almoços, tanto para as conduções, tanto para os lanches, mais um tanto para as passagens ida e volta a Santos. Se o resultado não bate, aumento ou diminuo um pouco o valor de algum item e pronto.
Nada disse o venerando. Ficou em silêncio.
Domingo à noite, ao despedir-se de mim, sentenciou:
- Não precisa mais fazer o relatório.

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