terça-feira, 16 de agosto de 2005

A festa dos eus


- Cara, quanta gente! Não podia imaginar uma coisa dessas. Olha só: nem enxergo o fim da mesa, de tão comprida.
- Pois é. E repara como são diferentes, muitos deles. Alguém poderia pensar que deveriam ser todos quase iguais, como gêmeos, mas não. Olha só aquele ali. O quarto, à direita. Todo certinho, todo janota.
- É mesmo. Quem é o cara?
- Quando você tinha dezenove anos, lembra que o Clóvis, teu colega de bancada no laboratório de circuitos eletrônicos, tinha aquela brincadeira de te oferecer um cigarro sempre que ia acender um? Ele sabia que você não fumava. Por isso mesmo, sempre oferecia. E um dia você aceitou, lembra?
- Claro que lembro, porra. Depois disso, fumei mais de trinta anos.
- Então. Esse cara foi a tua opção de não aceitar nunca a oferta do Clóvis. Jamais deu uma tragada. E, a partir de então, radicalizou: nunca ingeriu uma gota de bebida alcoólica, acho até que virou vegetariano.
- Puta cara chato. Deve ser um saco, conversar com ele. Ainda bem que sentou longe. E aquele lá. Quase em frente ao janota. O cara tem idade pra ser meu pai.
- É. Parece. Mas, como todos, tem a tua idade, claro. Aconteceu que, quando você começou tua militância política ele preferiu não entrar nessa. Continuou trabalhando na USP, fez carreira acadêmica. Sabe como é. Quase todo cientista fica com jeitão de velho meio precocemente. Os caras não se cuidam, não ligam pra aparência. Talvez seja isso. Ou, então, isso de puxar muito pelo cérebro envelheça as pessoas. Sei lá. O cara é meio desligadão, pode crer.
- Não sei não. Meu cunhado é matemático e parece mais novo que eu. Esse aí deve ter aprontado algumas, isso sim.
- Por falar em aprontar, repara naquele lá, tomando guaraná. Aquele não bebe porque é pastor.
- Pastor?
- É. Quando você saiu da Igreja Baptista ele preferiu ficar. Teu pai tinha morrido havia pouco tempo, lembra? A Igreja lá de Santos mandou o garoto pro seminário e ele virou pastor. Casou com uma namoradinha que ele tinha lá na Igreja e esquentou cadeira por lá mesmo. Em Santos. Está lá até hoje. Nem sei como ele topou vir a esta reunião.
- É. É um dos poucos que está tomando refrigerante.
- Bom, menos mal. Pelo menos não é como o janota, que só bebe suco natural.
- Verdade. Por falar em namoradinha, quem é o cara que casou com aquela minha noiva, a Sara.
- Ah. Não dá pra ver direito, daqui. Ele está sentado lá longe. Mas é político. Desses, de mensalão. Lembra do teu quase futuro sogro? Lembra que ele era todo enturmado com esses partidos de aluguel? Pois é. O genro entrou na dele. E parece que se deu bem. Tem sempre uns casos, por aí, mas continua casado com a Sara.
- Agora é que me liguei. Estão aqui todos os que ficaram com as mulheres das quais me separei. Não é à toa que tem tanta gente.
- Seu sacana.
- Brincadeirinha, brincadeirinha.
- Pra contrabalançar tua brincadeira, deixa te alertar: tem muitos que não estão aqui porque já morreram.
- Precisava falar nisso? Corta essa.
- Tá vendo aquele lá, barrigudão, bonachão? Aquele foi o que levou a sério o teu sonho de ser jogador de futebol. Ta certo que foi um jogador apenas medíocre. Mas curtiu à beça.
- Pô, cara. Taí. Esse eu invejo.

O conto acima é - propositadamente - um esboço. Trata-se do que poderia ser chamado conto Do it yourself (Faça você mesmo), no estilo daqueles manuais de carpintaria doméstica. Minha sugestão é de que você aproveite uma tarde de sábado ou uma daquelas noites em que todo mundo já foi dormir, sente-se em uma poltrona confortável, talvez com um cálice de cognac ao lado, e desenvolva A Festa dos Eus toda sua, da sua vida. Nem é preciso escrever. Apenas imagine. Faz bem e não custa nada.

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