domingo, 29 de novembro de 2009

Moral, imoral e outros babados


Essa discussão sobre se Lula teria ou não tentado sodomizar um rapaz na cela em que passou 30 ou 31 dias detido remete a uma reflexão sobre a moral do dia a dia e a moral impressa. A moral da oralidade cotidiana e aquela da letra de fôrma (saudade do tempo em que se acentuavam as homógrafas não homófonas).

Os arautos da moralidade formal alardeiam sua indignação. O povo segue em sua, digamos, amoralidade. Ou, se preferirem, em sua moralidade pragmática. Às vezes grosseira. Mas sempre majoritária.

E lá venho eu com minhas historinhas.

Início de 1.970. Eu queria casar. Mas como sobrevivia dando aulas em cursinhos preparatórios para vestibulares, não tinha um futuro promissor a prometer aos pais de minha futura esposa.
Saí à cata de um emprego mais respeitável. E fui ser engenheiro da Light.
Logo nos primeiros dias de trabalho fui alocado em um setor no qual já trabalhava um colega meu de curso de engenharia na Poli. Como a Light aguardava que chegassem os novos equipamentos de microondas recém adquiridos, não tínhamos nada a fazer. Certo dia, passei horas a fio vendo uma entusiasmada exposição de fotos da família de meu colega: fotos da casa recém comprada, fotos da esposa em seus afazeres domésticos, fotos da pequena filha, de poucos meses de vida. Não me lembro se havia fotos de cães e gatos.

Ao final do expediente, cada um com sua pastinha de executivo, partimos em direção à saída do prédio, situado bem no centro de São Paulo, Vale do Anhangabaú.

Fui em direção a um corredor que eu sabia dar acesso rápido à rua. Meu colega me alertou:
- Vamos por aqui!
- Mas não é um caminho mais longo?
- Sim, disse ele esboçando um sorriso maroto. Mas assim passamos embaixo de uma escada pela qual descem as moças e podemos ver muitas pernas.

Fui pra casa tentando conciliar minha tarde de imagens docemente familiares com o desejo sexual infantil de meu colega. Trabalho tão árduo quanto arrumar aqueles cubos mágicos de cores variadas.

Mas o povo funciona assim.

Outro dia, a Baixinha me veio com a notícia: colegas das sessões de hidroginástica, bem informadas, contaram que os políticos de Brasília têm – quase todos – amantes. Já Lula não. Ele e Marisa Letícia formam uma dupla muito unida. Tomam seus pileques junto e vão se apoiando um no outro até a cama, quando o equilíbrio fica precário.

E, no entanto, Lula acha engraçadíssimo fingir que tentou currar um rapaz na cela em que ficou preso.

Como disse, o povo funciona assim.

Pai dos pobres


Na terça-feira, 24 de agosto de 1.954, eu brincava no jardim da frente da casa de meus pais quando chegou Regina Evangelista, filha do ponta esquerda do ataque dos cem gols do Santos F.C., o famoso Evangelista, para avisar minha mãe da morte de Getúlio Vargas.
Do ponto de vista de meus modestos nove anos de existência, a choradeira a que minha mãe se entregou foi uma enorme surpresa. Nunca a vira chorar tanto.
Minha mãe fora uma das muitas pessoas recebidas, anos antes, por Darcy Vargas, esposa de Getúlio, no Palácio do Catete. Dona Darcy atendia pedidos de populares me parece que uma vez por semana. Formava-se uma fila no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, e dona Darcy ouvia os pedidos de cada um, anotava tudo e tentava atendê-los. Minha mãe, por exemplo, foi pedir a ela um emprego na Central do Brasil para um irmão que perdera, aos quatro anos de idade, um braço e uma perna em acidente de trem. Ela arranjou o emprego, meu tio trabalhou muitos anos na Central e hoje, aposentado, vive a casa dos oitenta anos muito bem, obrigado.

Lula vai pelo mesmo caminho. O de pai dos pobres e mãe dos ricos, como a oposição se referia a Getúlio.

O Bolsa Família, por exemplo, pôs fermento na popularidade de Lula e rende curiosas histórias. Uma delas me foi contada esta semana pela empregada aqui de casa, a Raimunda.
Ela, de tanto ouvir falar em Bolsa Família, resolveu verificar se não sobraria algum pra ela. Diga-se, resumidamente: Raimunda viveu alguns anos com um companheiro (não sei se casou formalmente ou não) e teve com ele três filhos, duas filhas agora já adultas e um garoto hoje com uns 10 anos. O marido, a certa altura da relação, mandou-se para o nordeste e ela segurou a barra dos filhos.
Pois bem: ao tentar arranjar uma boquinha na tal Bolsa Família, descobriu que o ex-marido, lá no nordeste, já estava recebendo a devida grana, em nome próprio e em nome dos três filhos.
O malandro foi rápido no gatilho.
Não tenho ideia de quais são e de como funcionam os mecanismos de controle dessa tal de Bolsa Família. Mas acredito na Raimunda e creio que a história seja mais ou menos essa mesmo.

Nesse ritmo, logo logo a popularidade do homem passa de 100%.

Nota: o chamado Ataque dos Cem Gols foi o ataque do Santos campeão em 1.935. Naqueles tempos, o ataque era formado por dois pontas, dois meias e um centroavante. O de 35, do Santos, era: Siriri, Camarão, Feitiço, Araken e Evangelista. Só foi superado pelo ataque dos anos 60: Dorval, Mengálvio, Pagão (depois Coutinho), Pelé e Tite (depois Pepe).

sábado, 28 de novembro de 2009

Filhos da Pátria


César Benjamin, ex-preso político, ex-petista, ex-candidato à vice-presidência da República etc etc, escreveu nesta última sexta-feira texto de página inteira para a Folha de S.Paulo (aqui, para assinantes Folha ou UOL).

Como o tema era o filme sobre Lula (Lula, o filho do Brasil), o título do artigo é Os Filhos do Brasil. Césinha, como era conhecido no PT, começa contando um pouco de sua vida nas prisões da ditadura militar. Foi preso aos 17 anos, ficou vários anos separado dos demais presos políticos, mantido em presídios de criminosos. Depois de algum tempo em cela solitária, foi entregue a alguns perigosos detentos, nu, para que fosse sodomizado. Segundo seu relato, os bandidos o respeitaram e aos poucos ele foi aceito no ambiente da prisão como o Devagar.
Essa parte do relato é bastante interessante. Só me aborrece um tantinho o fato de César, da mesma forma que grande parte da esquerda presa durante a ditadura militar, passar ao leitor a ideia de ter sido um herói sem mácula. De ter passado por tudo sem concessões. Essa postura do pessoal de esquerda é muito conveniente para ele, mas impossibilita que se entenda como uma repressão tão burra e imbecil como era a brasileira conseguiu prender todo mundo sem jamais ter feito nenhuma investigação séria. Conseguiu tudo na base da tortura. Na base do pau, como se dizia. Fica-se, então, com o enigma: ninguém disse nada sob tortura, mas a repressão conseguiu encontrar todo mundo. Mas vamos em frente.

Césinha, o Devagar, anos mais tarde, 1.994 pra ser exato, participava da cúpula que tocava a campanha de Lula à presidência da República. Durante um almoço, presentes Lula, Césinha, o publicitário Paulo de Tarso, um marqueteiro americano cujo nome Césinha não recorda e outro publicitário de cujo nome também se esqueceu, além de um segurança de Lula, o futuro presidente começou um papo:
- Césinha, você esteve preso quantos anos?
- Vários, desconversou César.
- Eu não agüentaria, continuou Lula. Não vivo sem boceta.
E contou como, durante os 30 dias em que esteve preso, teria tentado sodomizar um rapazinho preso com ele e com outros na mesma cela. O rapaz teria reagido com socos e cotoveladas.

A partir desse almoço, César Benjamin abandonou o PT.

Depois de ler isso que vai resumido acima, fiquei pasmo, é claro. Não posso duvidar do relato de César. Ele pode ser um xiita chatíssimo, mas não inventaria essa história.
Por outro lado, minha experiência de prisão me informa que alguma coisa, nesse relato, não fecha. Não faz sentido. Lula, preso por ser sindicalista em evidência, mantido em cela com outros companheiros, se realmente tentasse servir-se sexualmente de alguém também ali detido, teria tal fato imediatamente aproveitado pela repressão para destruir sua reputação. Não só os companheiros de cela o reprovariam, como os carcereiros perceberiam o que se passava e informariam seus superiores.

Na Folha de S.Paulo de hoje, na coluna de Mônica Bérgamo (aqui, para assinantes Folha ou UOL) lê-se, entre outras notas, as seguintes:

COMPLICADO
O cineasta Silvio Tendler diz ser ele o "publicitário brasileiro" de quem o editor César Benjamin afirma não se lembrar no artigo publicado ontem na Folha sobre a campanha de Lula em 1994. Nele, Benjamin relata conversa em que Lula teria revelado como tentou subjugar um preso nos 30 dias em que esteve detido, na época da ditadura militar. "Aquilo foi uma brincadeira, uma piada que ele tenta transformar em drama", diz Tendler. "Se o cara [Benjamin] não consegue entender piadas, é complicado. Ele deveria ganhar o troféu de loira do ano."

TREZENTAS
Tendler diz que a conversa era "uma brincadeira como outras 300" que Lula fazia todos os dias. "Não tinha nada do tom dramático que ele [Benjamin] quer dar. O cara deve estar muito ressentido para sacar isso com 30 anos de atraso."

Não conheço Silvio Tendler. Mas a interpretação que ele dá aos fatos relatados por César Benjamin me parece muito mais verossímil. A história contada por Lula só pode ter sido uma brincadeira. De péssimo gosto, diga-se. Mas brincadeira.

Que Lula é grosseiro, vulgar etc etc, já sabíamos muito antes de Caetano Veloso afirmar isso publicamente. Mas burro ele não é. Ao contrário, é extremamente inteligente. Não incorreria em erro tão absurdo.

Claro que a revista Veja saiu a campo para explorar esse filé. Achou até o rapaz que teria sido “abordado” na cela por Lula. Ele não quis se pronunciar e só disse que quem contou a história que prove. O blogueiro da Veja, Reinaldo Azevedo, deu também seus pitacos na história. É do jogo. Afinal, todo mundo precisa ganhar a vida.

Mas tudo indica que Lula escapará de mais essa bala perdida.

A julgar pelo nível de civilização que conseguimos alcançar no Brasil (para baixo, claro, em direção ao pré-sal), essa história talvez arraste nosso grande líder de seus 80% de popularidade para uns 90%.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Comida fria


Sou assim. Detesto brigar com alguém, mesmo que verbalmente. Mas as agressões de que sou vítima ficam gravadas sem chance de serem apagadas.
E acontece coisa curiosa: sendo eu ateu, percebo que meu santo é forte. Pessoas que aprontam comigo acabam por receber castigos dos quais não posso ser culpado. Nem que desejasse.
Quantas vezes fui traído de modo mesquinho. Quantas vezes fui injustiçado por pessoas que mal me conheciam. Passado algum tempo, batata! A pessoa se arrebenta contra algum evento no qual não tive a menor participação.
Trabalhei em uma empresa na qual me sentia tão bem que imaginei encerrar nela minha carreira. Tramas de familiares da tal empresa, familiar, me dedicaram um sonoro ponta pé na bunda.
Segui minha vida. Passado algum tempo, li nos jornais que o dono da empresa tinha sido assassinado pelo próprio filho. Coisas que acontecem.
Algum tempo depois fui ajudar amigo de adolescência a dirigir uma empresa que ele criara. Passado um ano e meio, realizamos negócio de uns 25 milhões de dólares. Ele acenou com um milhão pra cada um dos diretores da empresa (havia outro, meu amigo até hoje).
Depois de muita luta, consegui receber 100 mil dólares.
Passados alguns poucos aninhos, o cidadão, que fugira pra Portugal pra evitar os credores, morreu próximo a Évora, de modo até hoje um tanto misterioso.
Que azar. O dele, claro.
Tive um chefe que me reservou um rancor cuja origem me escapa. Conseguiu presentear-me com quatro longos anos de vida quase insuportável. Livrei-me dele, é verdade. Mas, além disso, tive a surpresa de vê-lo esborrachar-se contra acusações que lhe encerraram a carreira.
Que pena!
Bem antes, coisa dos anos 80, tive chefe que me demitiu da empresa e foi demitido quando os donos souberam que ele havia me demitido. E eu continuei lá, pra chateação do dito cujo.
Você pode pensar: pô, esse cara deu um jeito de ferrar o chefe. Mas não. Eu simplesmente aceitei a demissão e fui fazer a tradicional entrevista de bota-fora no RH.
Só que o pessoal da diretoria soube da história, sei lá como, e reverteu a coisa.
Coisas do meu santo forte. Fazer o quê.
Se eu esticar o papo, este post não acaba nunca.
Vejam: vou ser bacana com meus eventuais desafetos.
Se vocês quiserem me destruir, bola pra frente. Tentem.
Mas, desculpem, vai ser difícil.
Adoro comida fria.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Lemas de campanha


Lula está em dúvida: o nome do companheiro do Irã, afinal, é

Ama Dilma Já


ou


Arma Dilma Já


?


De qualquer modo, ele gostou. Pra usar na campanha, depende agora do gosto dos marqueteiros.

ARMA DILMA JÁ!

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Prazo de validade


O jornal Avante!, do Partido Comunista Português, saiu-se ontem com a seguinte manchete:


Isso me fez lembrar da anedota que me contou há anos um amigo que voltara de uma permanência de dois anos na Holanda. Dada a rivalidade entre noruegueses e holandeses, dizia-se que ao final de um vôo Oslo - Amsterdã a comissária de bordo anunciou aos passageiros:
- Senhoras e senhores, dentro de instantes pousaremos em Amsterdã. Queiram adequar seus relógios ao horário local: vinte anos para trás.

No caso do Avante!, proponho substituir os relógios por ampulhetas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Apagão


A julgar pelas desculpas esfarrapadas de sucessivos governos, pode-se dizer que

Um raio caiu duas vez na mesma explicação.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Era uma vez XXXVII -
O torturador light


Nos anos 60, enquanto cursava engenharia eletrônica na Politécnica – USP, morei com minha mãe em uma pacata vila das muitas que havia na Vila Olímpia, em São Paulo.
Na mesma vila morava um de meus professores na Poli, Roberto Marconato.
Naquela época, no curso de eletrônica, a relação entre alunos e professores era quase sempre muito estreita e informal. Os professores eram quase todos bastante jovens, pouco mais velhos que nós alunos. Além disso, vivia-se a transição dos circuitos baseados em válvulas para os compostos de transistores. Os professores haviam sido formados em válvulas. Quanto aos circuitos com transistores eles os estavam estudando junto conosco. Vai daí, nosso relacionamento era de muita transparência e mesmo de amizade.
Acrescente-se a isso o fato de morarmos na mesma vila e ter-se-á uma boa noção de meu relacionamento com Roberto Marconato. Eu estava no início dos vinte, ele devia estar com pouco mais de trinta anos. Já tinha uns dois filhos, frutos do casamento ainda recente.
Era comum, nos finais de semana, que eu conversasse longamente com ele na ruela em que vivíamos, enquanto ele vigiava os filhos pequenos a brincar.

= = =

Início de agosto de 1.971. Estou na OBAN. A parte mais pesada da tortura já passou. Passo os dias e noites em interrogatórios mesclados a pancadas com pedaços de paus e a choques elétricos com aquelas maquininhas a manivela com as quais nossos algozes se distraem. Mas as pauladas já são mais esparsas e menos contundentes. Os choques são dados nas mãos e parecem servir apenas para lembrar que o tormento não terminou.
Certo dia, início de noite, sou chamado para interrogatório. Aguarda-me um sujeito mais ou menos da minha altura, pouco mais velho que eu, magro. Ainda não o tinha visto por lá.
É certo que o sono me atormenta, a vista está um tanto embaçada. Mas ao encará-lo me espanto: parece o Marconato. Parece não. É.

Procuro controlar minha reação. Não. Não é ele. Mas só pode ser um irmão gêmeo. Tenho medo de demonstrar que de algum modo o conheço. Isso pode não ser bom para mim. Os torturadores usam pseudônimos e não querem ser identificados de nenhum modo por nós. Por motivos óbvios.

Ele amarra cada um dos dois pólos da maquininha às minhas mãos. E saímos pelos corredores do DOI-CODI à procura de uma sala livre para começar o interrogatório. O ambiente é relativamente calmo. O quanto pode ser calmo um local de torturas. Já não há presos novos, sujeitos a torturas mais agudas. Há a rotina macabra de interrogatórios apimentados por pequenas maldades. Já não há quase nada a extrair desses depoimentos. Mas eles, os homens do major Ulstra, precisam cumprir sua jornada de trabalho.

Ao longo de nossa caminhada, o sujeitinho gira esporadicamente e sem muita convicção a manivela do pequeno dínamo. Os choques são leves e me causam pouco sofrimento. Mas já estou exausto pela falta de repouso, pela tensão constante e choramingo. Sim. Choramingo. Isso parece diverti-lo. Minha humilhação o satisfaz.

Uma vez instalados em uma pequena sala, já sentados, ele deixa a maquininha de lado e inicia as perguntas. Respondo com voz cansada. Tudo é muito repetitivo. Ele não tem mais o que perguntar e insiste em perguntas já repisadas por outros carrascos.

Mais tarde, já no Presídio Tiradentes, durante a visita de sábado, minha mãe me contou que enquanto eu estava na OBAN ela recebera a visita da esposa do Marconato, que foi até nossa casa para confortá-la. Durante a conversa, como minha mãe se dissesse aflita por não ter notícias minhas, a visitante lhe falou que ficasse calma, porque eu estava bem e havia quem estivesse cuidando para que eu não sofresse (não sei se as palavras foram exatamente essas, mas foi algo por aí). Fiquei na dúvida: ela teria realmente informações de dentro da OBAN ou estaria apenas querendo acalmar minha mãe?

= = = =

Janeiro de 1.973. Acabo de sair do presídio em liberdade condicional. Em um de meus primeiros finais de semana fora da tranca, meu sogro – para testar minha reação – nos convida, a minha mulher e a mim, para almoçarmos no Círculo Militar, do qual é sócio.
Aceitamos. Aliás, apesar de não nutrir nenhuma simpatia por exércitos, nunca tive aversão a militares. Ao contrário, durante meu curso de engenharia tive três colegas oficiais da Marinha que eram exemplos de bom caráter e excelentes alunos. Tenho um tio que se reformou como coronel da Aeronáutica e com o qual tenho excelentes relações e pelo qual nutro muito carinho. Nesse mesmo ano de 73 eu viria a dar aulas para o 3° ano de Engenharia Naval, na Poli. Os melhores alunos da turma eram os dez oficiais da Marinha que se valiam do convênio existente entre ela e a Escola Politécnica.

É certo que as Forças Armadas moldam seus membros de um modo que não me agrada. Mas engenheiros também têm seus cacoetes, assim como advogados etc etc.

Também é verdade que esse meu tio que referi acima teve de abrir mão de seu sonho de ser aviador e contentar-se com a Intendência (área administrativa) pois, na época, a Aeronáutica não admitia aviadores negros. E o preconceito não se restringia ao aspecto racial. Tenho um primo loiro que também nutria o desejo de ser aviador e se viu impedido de realizá-lo porque seu rosto era bastante marcado pelos resquícios das muitas espinhas que o atormentaram por toda a adolescência. Ao contrário do tio de que falei, ele recusou a Intendência e foi cursar engenharia fora da Aeronáutica.

Faço votos que todos esses preconceitos pertençam ao passado das Forças Armadas. E voltemos a nosso almoço dominical no Círculo Militar.

O almoço transcorreu sem nenhuma ocorrência especial. Ao final, estávamos caminhando para a saída do clube quando encontro com meu ex-professor Roberto Marconato, que chega com mulher e filhos.

Pergunto se ele costuma freqüentar o Círculo Militar e ele responde que sim, que seu irmão é oficial do Exército.

Despeço-me dele e de sua esposa. Nunca mais o vi.

= = = =

O presumível irmão dele foi – é verdade – um torturador light. Pelo menos comigo.
Claro que Roberto Marconato, meu ex-professor, não pode ser minimamente incriminado pelas escolhas do irmão, mesmo que o torturador seja seu irmão gêmeo.

Quanto ao torturador, me agrada crer que ele seja atualmente – assim como todos os torturadores – um indivíduo atormentado pelo próprio passado.

Gostaria muito de reencontrar Roberto Marconato para tirar a limpo a dúvida. Caso isso viesse a ocorrer, começaria por perguntar se seu irmão oficial do Exército não apresentou, lá na década de 70, indícios de que seu salário tenha repentinamente e por um bom tempo aumentado coisa de três a quatro vezes.

Era, pouco mais pouco menos, a recompensa recebida pelos militares torturadores. E a quase totalidade estava lá graças a isso.

domingo, 8 de novembro de 2009

Sonho e memória


Há pesadelos que parecem remeter à morte. Contudo, se é verdade que nenhum indivíduo passou pela experiência final (e isso é verdadeiro por tautológico), pesadelos assim denotam, isso sim, sentimentos e sensações ligados à expectativa da morte.
Se tenho medo de morrer, lido com esse sentimento também por meio de pesadelos.

Digo isso até mesmo por não ser daqueles que acreditam terem os sonhos um possível caráter de premonição. Portanto, a meu ver, se sonhos apontam para eventos futuros (a morte é um deles), só posso entender que os significados vinculados a esses sonhos referem-se a vivências atuais ou passadas minhas, provocadas pela espera – temerosa ou não – do aguardado evento.

O mesmo não deve ser dito a respeito de sonhos cujo conteúdo manifesto se desdobra em interpretações que remetem a eventos pretéritos.

Já há algum tempo que venho tendo pesadelos cujo conteúdo manifesto varia, mas sempre em torno de um mesmo esquema: preciso chegar a algum lugar, ou ir ao encontro de alguém. O caminho percorrido apresenta complicações crescentes que me impedem de chegar ao destino. São escadas que surgem e que me levam a lugar algum, portas que se abrem e me remetem a situações diversionistas etc etc.

Pois esta noite, enveredei por um desses pesadelos em uma versão erótica. Estou em companhia de uma mulher com a qual quero fazer sexo. Estamos em um infindável edifício, dotado de vários blocos, cada um deles pleno de corredores e muitas salas. Vamos em busca de alguma sala vazia onde seja possível consumar o desejo.

Nos moldes de meu recorrente pesadelo da busca infindável, não conseguimos encontrar local propício. Um sentimento aliado a tal conteúdo manifesto é o da angústia da procura frustrada. Outro, o de persistência incansável.

De repente, em um corte próprio do mundo onírico, vejo-me – mais do que me ver, sinto-me – entre as pernas muito alvas da mulher, agito as pernas e percebo estar coberto de intenso suor. Mas não. É mesmo líquido amniótico.

Essa última constatação já fará parte da vigília? É provável. Sei que, ao acordar, a interpretação da cena como nascimento impôs-se de modo irresistível. Respirei fundo, com indizível prazer e esse ar foi o primeiro a freqüentar meus pulmões.

Cantor e a teoria dos conjuntos trouxeram o conceito de infinito atual, em contraste com o familiar infinito potencial. Este último pode ser descrito pela brincadeira infantil de pedir que alguém diga um número qualquer e logo vencê-lo com número maior. O infinito potencial é uma possibilidade, com o perdão do truísmo. O infinito atual não. Ele é. Quando menciono o conjunto dos números naturais, essa infinidade desaba sobre mim com realidade equivalente à de um paralelepípedo. O infinito potencial tende a um sem fim. O atual é sem fim.

Essa digressão vem a propósito de duas considerações:
A primeira diz respeito ao conteúdo latente dos sonhos: ele nos é dado como conjunto de interpretações, conjunto infinito, até onde se pode vislumbrar. Nesse sentido, teórico apenas, trata-se de infinito atual.
Já nossa exploração desse tesouro onírico infinito se dá nos moldes de infinito potencial. As interpretações se sucedem, indefinidamente. Isso não nos permite concluir que todas sejam de igual peso. Há hierarquia nesse universo. Há as que se mostram mais significativas.

A segunda consideração refere-se àquilo que senti ao vivenciar – de modo onírico mas não menos real – o momento de meu parto.
É como se minha vida, até então algo que se desdobrava com o passar do tempo e na qual cada momento era “vencido” pelo momento seguinte, em direção ao infinito (outro nome da morte), é como se minha vida, repito, acabasse por se ter tornado uma infinitude atual, embora só aplicável ao passado.

De qualquer modo, algo se completou. Até então, a lembrança mais remota que me pertencia era uma cena de festa junina, rua Pego Junior, Vila Mathias, Santos, seu Raul e muitos meninos a preparar a soltura de um enorme balão. Naquela época isso não era considerado um ato perigoso (e talvez não o fosse, mesmo). Eu estou sentado no meio fio, pés na sarjeta seca, a observar tudo. Afinal, era o que me permitiam, na insignificância de meus 3 ou 4 anos.

De hoje em diante, tenho lembrança mais remota. O mundo onírico quis me presentear com a vivência de meu nascimento. E essa interpretação se impôs como principal. Mais: única. Tal qual a profunda tomada de ar que dei ao acordar e que me uniu àquele recém-nascido que lutou mais de duas horas para vir à luz.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Planejamento astral


Deu na Mônica Bérgamo, hoje (aqui, para assinantes UOL ou Folha):

ALTO ASTRAL
A namorada do ex-deputado José Dirceu, Evanise, consultou sua astróloga para saber qual era o melhor lugar para comemorar seu aniversário. Ouviu a recomendação de embarcar para Machu Picchu, no Peru. O casal passou o feriado no hotel Sanctuary Lodge, da cadeia Orient Express, que fica em frente às ruínas do lugar.


Dirceu, homem forte da campanha de Lula a presidente em 2.002, depois ministro da Casa Civil (e, virtualmente, primeiro ministro) até ser derrubado sob acusação de ser o líder do Mensalão, tsunami político que os petistas negam que tenha existido, foi comemorar o aniversário da namorada seguindo a orientação da astróloga da dita cuja. Ao voltar, deve ter retomado sua atual tarefa de influente articulador da candidatura Dilma Rousseff.

Começo a entender a metodologia de planejamento do governo.

Se Luchino Visconti fizesse "Morte em Veneza" nos dias de hoje, o nome do filme teria de ser "A Morte do Pedófilo".